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SEMAR omite existência do maior Quilombo do Nordeste para beneficiar mineração no Piauí

Quando o bolsonarismo é só uma desculpa!

Peço que leia a próxima frase três vezes pois, mesmo tendo escrito eu mesmo, não faço fé de que ela transmita conteúdo verdadeiro e, ainda assim, transmite: 

A Secretaria de Meio Ambiente e Energias Renováveis do governo do Piauí publicou no dia 23 de novembro de 2022 um Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) a ser discutido em Audiência Pública no dia 06 de dezembro na Igreja das Nações em São Raimundo Nonato (PI). 

Se esta informação parece banal, vejamos. Este mesmo relatório foi publicado em 2019 como parte de uma peça obrigatória de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de um empreendimento de mineração de ferro magnético conduzido pela SRN Holding, que pretende se instalar no Território Quilombo Lagoas, cujo território começou a invadir por volta de 2015. O assustador nesta notícia é que a Audiência Pública para discutir o EIA-RIMA publicado em 2019 já aconteceu, seu conteúdo foi rejeitado por unanimidade pelos presentes e um novo EIA, igualmente fantasiosos e equivocado, já foi publicado em 2022 com vistas no mesmo empreendimento, que insiste em invadir o Território Quilombo Lagoas. Repito: um Relatório de Impacto Ambiental já rejeitado em Audiência Pública está sendo recuperado para a realização de uma segunda Audiência Pública mesmo que sua rejeição tenha sido motivada por sua total falta de valor. Por qual razão? Porque seu conteúdo afirma com todas as letras que na área de influência da atividade de mineração não existem nem terras indígenas e tampouco quilombolas (vide página 27 do documento disponível aqui; http://www.semar.pi.gov.br/editais/). 

Reunião do MPF, DPU, DPE e OAB na comunidade do Xique-Xique, Território Quilombo Lagoas.

A Audiência Pública do dia 06/12/2022 marcará a data da terceira tentativa da Secretaria do Meio Ambiente e Energias Renováveis (SEMAR) em validar um documento de licenciamento ambiental composto por informações falsas criando condições extra oficiais de desregulamentação ambiental. Daí o lembrete de ler três vezes. 

Ora, omitir a existência do Território Quilombo Lagoas não é um detalhe qualquer. O Território Quilombo Lagoas é o maior quilombo do Nordeste Brasileiro, a maior área de caatinga ocupada por uma população quilombola composta por milhares de pessoas localizado no Território da Serra da Capivara. São 119 comunidades em 62.375 hectares sobrepostas em 6 municípios do sudeste do Piauí (São Raimundo Nonato, São Lourenço do Piauí, Dirceu Arcoverde, Fartura do Piauí, Bonfim do Piauí e Várzea Branca). 

No Quilombo Lagoas existe uma Associação Territorial politicamente reconhecidamente ativa na defesa de seu território que já está delimitado, com mapa publicado e em processo de demarcação (INCRA, Processo 54380.0002161/2008-03) e aguarda a finalização de sua titulação, já em curso por meio dos trabalhos do Instituto de Terras do Piauí (Lei nº 21.469, de 05 de agosto de 2022; Lei nº 7.294, de 10 de dezembro de 2019; legislação piauiense). 

Manifestação contra a Mineração, ocorrida em 2017. Sétimo Grito do Semiárido, organizado pela Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato e com participação das comunidades do Território Quilombo Lagoas.

Este mesmo território vem sendo assediado pelo empreendimento da SRN Holding desde 2015, data da fundação da companhia. Mas o assédio de mineradoras dentro do território é anterior, como no caso da extração ilegal de madeira e instalação de fornos para produção de carvão vegetal protagonizado pela Galvani Mineração em 2014. Além disso existe um rumor permanente nos corredores palacianos de Teresina de que o Território Quilombo Lagoas não pode ser, tem que ser picotado, é grande demais ainda que seu devido processo seja detalhado e tenha sido finalizado sem qualquer contestação de qualquer órgão ou ente privado. É preciso que entendamos então que precisamos melhorar, pois estamos doentes. 

O que descrevo aqui é a situação em que uma secretaria do estado do Piauí é contradita frontalmente pelas ações do Instituto de Terras do mesmo governo, no mesmo estado piauiense. E este detalhe é particularmente perturbador. O estado do Piauí busca titular por meio da Lei 7.294 um território quilombola que o RIMA de 2019, publicado pela SEMAR, diz não existir. O RIMA atesta a inexistência de terras quilombolas na área de influência mesmo que o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação do INCRA já tenha sido devidamente publicado em 2010. O RIMA nega a existência do que não somente já foi reconhecido, mas do que já foi discutido em Audiência Pública com mais de 200 pessoas que compareceram para reafirmar sua existência diante deste despautério abusivo conduzido pelo governo do estado do Piauí. 

E ainda assim, após este histórico absurdo, a SEMAR volta a chamar uma nova Audiência Pública, sem nem sequer respeitar os procedimentos legais de comunicação com as populações atingidas e, principalmente, atropelando novamente os direitos das 119 comunidades quilombolas do Território Quilombo Lagoas. 

Ação coordenada pela DPU no Território Quilombo Lagoas em outubro de 2022.

Essa situação não nos deixa muitas alternativas de interpretação. Ou as ações da SEMAR indicam a mais absoluta incompetência do órgão, ou são signos de má fé. Se for caso de incompetência, então é necessário interditar a SEMAR. Um órgão que, após 6 anos de descalabro com as políticas ambientais no país, não pode ficar nas mãos de gente que não tem atenção, coragem, conhecimento ou competência para conduzir processos tão delicados que definem a sobrevivência de populações inteiras e da caatinga em toda uma região. Vale dizer que a mesma SEMAR, junto ao ICMBio, flertam com o projeto de instalação do monocultivo de soja no corredor ecológico entre o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Parque Nacional da Serra das Confusões desrespeitando integralmente os esforços de constituição de um zoneamento econômico ecológico da caatinga em pé e viva. 

No caso de estarmos lidando com episódios orientados por má fé, então somos testemunhas da violação planejada da legislação ambiental, o que não somente é crime, mas afeta nossa capacidade de cuidarmos da caatinga e de seus povos, de quem dependemos efetivamente para vivermos em ecossistemas diversos e equilibrados. Mas não nos apressemos. Não é necessário escolher entre a incompetência e a má fé. É perfeitamente possível que tenhamos chegado a este ponto conduzidos tanto por incompetência quanto por má fé, o que é, convenhamos, uma combinação perigosa. É perfeitamente possível agir de má fé de forma incompetente, o que torna tudo muito mais perigoso. 

Nesse cenário tenebroso de quem faz gestão mal ajambrada, com tijolos colados com cuspe, lembremos que péssimas políticas ambientais são a forma de fazer passar a boiada que ajudou a transformar o governo de Jair Bolsonaro em uma enorme caricatura capturada pela retórica eleitoral, que abusou da narrativa do bem contra o mal. Mas, no caso, estamos falando do Piauí, um estado historicamente gestado pelo Partido dos Trabalhadores – PT, partido que adora acumular os predicados de ser o Bem eleitoral nacional. Em um Piauí das caatingas, a longa permanência petista vem conduzindo agendas de desenvolvimento econômico com uma Secretaria de Meio Ambiente insuficiente, incompetente e que, sabemos, caso estivesse mobilizada para fiscalizar ativamente todos os empreendimentos que urubuzada nos céus piauienses, não teria meios para isso. Sua ineficiência e precariedade é um projeto em execução. O bolsonarismo não pode ser só mais uma desculpa útil.

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