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Sobre o caso Suzy: das cartas à guilhotina

É delicado e nos exige cuidado e sensibilidade para entender o todo. Os crimes de estupro por meios sexuais causam comoções, geralmente punitivas: não por acaso, historicamente, sabemos que, na cadeia, estuprador costumava ser punido com estupro. A discussão é longa, mas sabemos que a vítima, em muitos casos, é posicionada como instrumento de comunicação de poder entre os pares, em confrarias masculinas. Sai o erótico, entra o pornográfico. Afasta-se da busca de prazer sexual e entra a exibição de poder, de controle, de expropriação. É menos sobre o sujeito que “pode” estuprar e mais sobre um mandato de “dever”, de ordem que o/a agressor/a deve estuprar para fazer parte de uma irmandade hierárquica (em regra, viril, masculina). Parto das reflexões da professora Rita Segato, que tem produções valorosas sobre o tema.

Digo isso apenas para ilustrar que há um algo escondido por detrás dessa comoção reversa contra Suzy, que afirma ter se prostituído para comprar uma pasta de dente na cadeia e que não recebe visita há 8 anos. Agora, no lugar da mobilização para o envio de cartas à Suzy, defende-se o contrário: o prosseguimento dos estupros contra seu corpo e o aprofundamento de seu abandono. O processo criminal atribuído a ela, ao crime que a condenou, em sendo confirmado, comunica uma barbárie dupla: primeiro, o crime é, sim, cruel e, o pior, é norma fundante da lógica cisheteropratriarcal branca; segundo, o que estão pedindo agora não é o estupro pelo estupro desprovido de significado, como uma segunda punição à Suzy. Há um regime mafioso de poder e perpetuação da violência, da crueldade, que quer inscrever sobre o corpo de uma travesti a punição pela desobediência à ordem patriarcal (por ser uma travesti) e retirar o suposto status de poder que se interpreta a partir do crime que cometeu. Estuprar uma criança ou qualquer sujeito que esteja nessa posição (feminina ou feminizada) é expropriá-la, é carimbar soberania sobre ela e comunicar aos demais.

Suzy foi condenada em todas instâncias de poder: formal, pela sentença condenatória; e informal, pelo estupro na prisão e abandono dos familiares.

Suzy é personagem de uma cena maior em que a ordem de crueldade é o roteiro principal. Na frente do palco, há uma semana, estava ela, ‘tão coitada, tão singela’, relatando seu abandono e sendo abraçada por Drauzio. Mas Suzy é Geni. E logo raiou o dia e a cidade em cantoria não a deixou dormir. O ‘joga pedra’ na Geni, na performance mais dogmática do calvário cristão, assim como na letra de Chico, fechou o espetáculo.

Eu não quero reduzir nem aumentar a pena imposta à Suzy, mas jamais irei admitir a justificação dos estupros que sofreu como parte disso. Essa pena informal é inadmissível e diz muito sobre quem administra a cena, nossa sociedade patriarcal (que pouca de nós tem), do que sobre ela. Diz mais sobre a validade do estupro como código de guerra em nossa sociedade, como massacre do outro, do que sobre o ato dela em si.

Drauzio, mais uma vez, deu um show de sensibilidade ética e ainda deve arder para pagar pela preservação da ética de sua atuação irretocável. Há outras personagens além de Suzy na reportagem. Há várias outras que ainda permanecem nos bastidores da violência. Dentro e fora dos presídios.

Há uma ordem de violência correndo pelas nossas veias. Podemos destruir Suzy e rasgar suas cartas, mas jamais irão destruir a força maior que há nesse espetáculo: o poder e o desejo de morte que sobrevivem entre nós.

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Lourival de Carvalho.

Mestre em Direitos Humanos e Doutorando em Direito pela UnB. Pesquisador na área de Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.

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