Dois estudantes de Psicologia em Teresina, capital do Piauí. A vontade de criar um espaço de debates articulando poesia, filosofia e psicologia. O envolvimento de mais pessoas na vibe. Em 27 de agosto de 2006, foi fundada a Sociedade dos Poetas Por Vir (SPPV), autointitulado coletivo ativista-poético. O coletivo ocupou as ruas e praças não somente com poesia, mas com ações poéticas. Era uma coisa de ser abusado nos ônibus, de sair colando na cidade os mais diversos e loucos poemas despertando os transeuntes. Até na rádio FM Universitária essa sociedade deixou sua marca com o Programa Gira Poesia. E a menina SPPV era e é de fazer girar mesmo.
Sobre essas origens, o servidor público André “Café” Oliveira, um dos fundadores, fala a respeito: “É incrível pensar, lembrar de toda trajetória da SPPV. Victor e eu mal imaginávamos ou tínhamos a dimensão daquilo que fizemos nos anos mais atuantes da menina, que é como carinhosamente a chamamos, mas veja só, chegando à maioridade. Digo isso pois a gente tava naquela época fazendo zine, andando no centro da cidade, praça Pedro II, Boca da Noite no Clube dos Diários, passeio da Avenida Frei Serafim. A gente tava vivendo a cidade e com vontade de fazer algo, só não sabia o quê”.
Café prossegue falando sobre o crescimento da Sociedade dos Poetas Por Vir, e a continuidade do grupo, ainda que nas mentes e corações: “Desses encontros da vida, de conhecer o Vitin num contexto de faculdade de psicologia, da gente montar um esboço do zine Peneira do Miolo, que seria o zine da SPPV, minha saída da faculdade e a vida que fomos seguindo nas correrias, mas sem perder contato. Pra só no fim de dezembro de 2010, a gente voltar a falar da menina. Acho que também por isso, a chama de se encontrar até hoje e comemorar ou fazer referência a mais um ciclo da SPPV, mesmo sem atividades nas ruas, permanece”.
Desde dezembro de 2010, o grupo mantém um blogue, com mais de 6000 produções de vários estados do Brasil e do exterior. Além disso, de 2011 a 2015, a SPPV movimentou a cena cultural de Teresina, mais especificamente da Praça Pedro II, com diversos saraus. A educadora, apreciadora cultural e audiodescritora Solange Lustosa conta da sua experiência na participação desses eventos. “Ter participado de saraus em praça pública, para mim, foi encantador! Cada poesia declamada, transformando o pensar, causando fortes sentimentos pelas mensagens poéticas, foram momentos que ficarão para sempre nas melhores memórias”.
A Sociedade além dos saraus
Nem só de sarau em praça pública viveu a menina SPPV. Intervenções em ônibus coletivos de Teresina, chamadas de Poesia Abusada, também fizeram parte das atuações do grupo. A jornalista Dalila Pereira (“Doda Pereira” em seu nome artístico) fala um pouco mais sobre as “Abusadas”: “A gente queria levar a poesia pra todos os espaços e pro dia-a-dia das pessoas. Onde o trabalhador passa uma grande parte do seu tempo? No transporte, então íamos de uma ponta a outra da cidade, dentro dos coletivos recitando poesias, deixando o dia das pessoas mais leve. No geral, a galera gostava”.
Foram realizadas formações ativistas-poéticas na capital do Piauí e em outras cidades do norte e do sul do estado. Uma das mais marcantes aconteceu em Piripiri, sobre “Cultura nas Periferias”. A esse respeito, o educador social Fleibert Rodrigues, mais conhecido como Kacau, relata o impacto dessas vivências nas realidades dele: “Essa vivência, essa troca de energia com essa menina foi um grande acontecimento na minha vida. Foi uma confluência muito louca, conhecer a SPPV numa formação, eu já tinha ouvido falar de alguns saraus ali pela Praça Pedro II, as intervenções que a galera fazia, mas não conhecia o pessoal”, relembra Kacau.
O educador conta que não desistiu até conhecer a menina e também se permitiu conhecer. “Aí um amigo de trabalho, Xudunga (educador social), foi convidado a participar dessa formação sobre Cultura na Periferia, já tinha contato com a galera, mas não pôde ir, e me perguntou se eu poderia. O Jorge André entrou em contato comigo e o irmãozinho fez o convite de primeira, e eu fiquei meio cabreiro, aquela cabreiragem periférica. Mas acabei me permitindo, e fui numa vivência em Piripiri e lá foi outro momento doido, revi o irmão Glauco, um grande amigo. Vivi essa experiência com essa galera massa”.
Fleibert prossegue falando de como a cabreiragem inicial foi se desfazendo: “Comecei a ver que aquela galera se colocava para fazer a arte e a cultura girarem, um compromisso social. A arte pela arte ela não comunica, pra mim, mas quando ela vem pra provocar e intervir no meio, ela faz seu papel mais bonito e revolucionário. Em Piripiri, foi um momento de troca de saberes, eu falei da minha vivência com a cultura na minha comunidade, a Santa Maria da Codipi, de mostrar que essa arte e essa cultura seriam alternativas para o cenário de violência infantil e infanto-juvenil no bairro, sempre tinha esse viés nas nossas ações e na minha atuação especificamente em quase 25 anos na Santa Maria, desde os 15 anos. De lá pra cá foi construída uma irmandade que ultrapassa os laços sanguíneos, e eu levo pro meu coração. Salve salve a todos e a todas da Sociedade dos Poetas Por Vir, me sinto um de vocês”, finaliza.
De 2012 a 2015, foi apresentado o programa Gira Poesia na rádio FM Universitária da Universidade Federal do Piauí. A princípio gravado, o Gira começou a ser ao vivo desde 2013, e ao longo desse período contou com diversos formatos e pessoas locutando e produzindo a atração.
A professora e contadora Hannah Cintra fala de como foi experienciar a produção do Gira.
“Acho que todo mundo que ama música, de verdade, já teve o sonho (ou brincou) de apresentar seu próprio programa de rádio. E eu tive a chance de vivenciar isso e muito mais através do Gira Poesia. Eu não cursava Jornalismo, nem fazia Comunicação Social, era só uma estudante de Ciências Contábeis que participava de um coletivo de poesia (a SPPV), pois escrever e ler poesias foi um hobby que eu sempre tive. Fiquei fascinada quando descobri que a SPPV tinha um programa na rádio universitária, que na época estava em fase experimental e dava uma certa liberdade pro pessoal do coletivo (Jorge André, André Café, Dalila) criar um programa bastante diverso, plural, cultural, numa vibe meio MTV, só que apenas pelo áudio.
Assim, Hannah não teve dúvidas de fazer parte do programa: “Na primeira oportunidade que surgiu de participar do Gira Poesia, eu embarquei. A princípio atuando nos bastidores, escolhendo as poesias a serem declamadas, fazendo a curadoria das músicas que seriam apresentadas ao longo da programação, até cair no meu colo a chance de fazer locução em alguns momentos. Eu fazia de uma maneira um pouco canhestra, minha timidez atrapalhava às vezes, mas havia muito carinho e entusiasmo em tudo que eu fazia no Gira, e aos poucos fui pegando o jeito (eu acho).
Ela finaliza falando das boas lembranças a respeito da atração: “Vivi momentos muito bacanas e divertidos no Gira, em que pude entrevistar artistas locais e nacionais, conhecer trabalhos e pessoas incríveis, aprender a arte do improviso, entender — minimamente — como funciona um programa de rádio. Fui até reconhecida por alguns colegas, parentes e professores que, por acaso ou rotina, ouviam a transmissão! É, eu vivi esse sonho (um dos melhores que já tive), e graças à SPPV”.
A artista Jamile Jah, uma dessas produtoras, conta mais como aconteceu essa vibe. “A gente sempre tinha uma atração musical, conversava um pouco da carreira do artista, fazia uma Live session tudo ali ao vivo, o programa era gravado mas quando eu entrei na apresentação junto com o Jorge e Dalila já era ao vivo. Tenho ótimas lembranças das tardes na rádio Universitária e foi muito importante pra mim enquanto artista pois conheci um vasto repertório musical, no programa a gente dava preferências para as músicas locais e também de bandas independentes dos outros estados. O roteiro era colaborativo entre os sociopoetas, tinha ali um modelo mas todo participava, dava sugestão de pautas, artistas a serem entrevistados e escolha das canções que tocariam em cada programação”.
O experimentalismo, como se espera de uma rádio-escola, era marca do programa. Improvisos eram frequentes, dentro de estruturação. Nessa perspectiva educomunicacional e poética a jornArtista e professora Sarah Fontenelle Santos foi quem colaborou com a equipe do Gira Poesia até o final do programa.
Ela aborda como o caráter educacional pôde ser alcançado em articulação com as propostas da Sociedade dos Poetas Por Vir . “Foi uma grande aventura, a poesia girou com a política, com os movimentos culturais de rua, com a luta antiproibicionista, com os movimentos pelo direito à cidade e tudo o que mais com quem a gente quisesse confluir e elaborar uma comunicação poética, abusada, afrontosa e prenhe de saberes”.
A JornArtista Sarah acrescenta que foram muitas pautas ali elaboradas coletivamente e “tanto quanto podíamos buscávamos estender o direito da palavra a mais pessoas que quisessem fazer comunicação e romper os silêncios da estrutura midiática dura. Lembro que inventamos modos de ser e fazer jornalismo, com uma pegada mais literária. Saíamos em busca dos ruídos das noites, das artes invisibilizadas e só servia pra gente um jornalismo que fluísse no poema, mesmo que caótico e farfalhando folhas ao microfone. Lembro do Fala Cajueiro, quadro do Vicente Vince que se pretendia ser uma espécie voyeur das conversas que rolavam sob a copa do Cajueiro, mas sempre captando o que mais tinha de potente na criação, na arte, nas ideias inovadoras. E fazer jornalismo era uma fantástica aventura”.
Há Sociedade para além da Sociedade?
Com 18 anos desde a sua fundação, a SPPV tem duas datas de aniversário: 7 e 27 de agosto. Originalmente 27, os membros convencionaram mudar o dia para 7 de agosto, por ocasião do encantamento de Victor Marchel, o outro membro fundador da Sociedade dos Poetas Por Vir, em 2011. O 7/8 era o dia do aniversário de Victor, que batizou o coletivo – e só ele saberia dizer o porquê desse nome. Café conta dessa amizade, e como fazer girar a SPPV se tornou uma forma de honrar a memória de Victor. “Depois da partida do Vitin, muita gente se achegou à minha pessoa. Muitas eu já conhecia, outras foram novidades. E eu também me acheguei. E nisso a gente foi juntando ideia e criando coragem pra fazer atividade nos espaços públicos e interagindo com as pessoas. Assim, fazendo e aprendendo, sem tanta concretude mas com firmeza em princípios, que podem ser resumidos como a poesia é pertence do povo, é pertence do mundo.
Ainda que a proposta fosse aberta, o coletivo também recebeu críticas. Sobre esse ponto, prossegue Café: “A intenção nunca foi questionar o que era ou não era produção poética. Era ter essa perspectiva que as pessoas podiam produzir, ter pertencimento. Íamos ali, nos constituindo devagarinho, até ter essa rede de amizades, de conhecimento, de interação entre outros grupos, Entidades, movimentos. Fizemos, especialmente, o coreto da praça Pedro II falar. E a gente certamente é forjado muito nisso. Então a menina, que gira seus giros nos princípios de poesia e pertencimento, é um pedaço mágico das nossas histórias e da história de Teresina”.
Ainda que não tão vibrante como em outras épocas, a Sociedade continua a girar e vibrar pra além do que já tem construído. Quem trata desses giros e gerações é a multiartista e graduada em moda Bia Magalhães, cuja primeira apresentação ao vivo ocorreu num dos saraus do coletivo. Atualmente, ela reside em São Paulo, em busca de expansão da carreira. “Já fazem o quê, uns 13 anos (risos)? Faz um tanto de tempo que lembro apenas de flashes, mas vívidos na minha memória”.
Bia fala sobre o tempo em que conheceu esta potente coletividade: “Lembro que foi em um sarau que aconteceu na Oficina da Palavra, toquei voz e violão, com muito nervosismo, medo e receio do que as pessoas iam achar da minha música super amadora de uma garota de 19 anos de idade. Bons tempos! Mas pra mim foi o princípio da minha jornada como artista, e agradeço muito, principalmente ao André Café pelo incentivo e por me mostrar que poderia ser capaz. Dali em diante, a Sppv fez parte dos meus primeiros passos como gente, tendo contato com arte e literatura como nunca tinha tido, então pra mim foi uma escola, de muito aprendizado e encontros que levei pra minha vida profissional e pessoal”, diz Bia .
A pesquisa acadêmica também fez e faz reverberar os ecos da menina. Atualmente eu desenvolvo minha pesquisa de doutorado em Artes na Universidade Estadual de São Paulo sobre os caminhos trilhados e a trilhar a partir da Sociedade dos Poetas Por Vir. Essa menina me levou e me leva nas minhas trajetórias acadêmicas, pessoais e profissionais. Além de achar justo tratar sobre o coletivo, creio que essa pesquisa-registro pode contribuir para que mais pessoas conheçam a SPPV, e que tenham elementos para também traçarem suas rotas nos caminhos da Arte e da vida, os quais entendo se misturam. Vamos que voamos!
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