Colin Kaepernick e Ângelo Assumpção, vítimas de uma sociedade racista, contam como viver em mundo de discriminação é dureza
Este conteúdo faz parte da série de reportagens sobre Direitos Humanos realizada pelos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) matriculados na disciplina Direitos Humanos, Comunicação e Políticas Públicas, unidade ministrada pelo professor Dr. Antonino Condoreli. As reportagens têm como objetivo refletir as questões de direitos humanos criando ambiente crítico no âmbito da mídia, além de contribuir para a disseminação dos conteúdos acadêmicos na sociedade.
Por Luiz Gustavo Ribeiro e Vinicius Veloso
“Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. Isso é o que está escrito no 7º Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 10 de dezembro de 1948, em Paris. O documento que reúne 30 artigos, e é adotado por diversos países, é a Carta Magna dos direitos inerentes a todos os seres humanos. Passado mais de 70 anos da criação dos direitos humanos, a discriminação racial continua sendo um direito violado todos os dias.
DA ASCENSÃO À CENSURA
“Eu não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor”, após essa frase a vida do jogador de futebol americano Colin Kaepernick nunca mais foi a mesma. Nascido em Milwaukee, Wisconsin (EUA), Kaepernick entrou na NFL (principal liga de futebol americano do mundo) pelo Draft de 2011. Ele foi selecionado pelo San Francisco 49ers e teve uma ascensão meteórica dentro de campo. Após um ano como reserva da franquia, o quarterback levou a equipe californiana até o vice-campeonato do Super Bowl XLVII em 2013 e na temporada seguinte, até a final da conferência.
Nos anos seguintes, o desempenho do jogador foi caindo junto com o rendimento do time e mesmo sendo um dos astros da liga, ele começou a ser contestado. E foi justamente durante esse período, que o Kaepernick começou a se manifestar contra a violência contra os negros nos Estados Unidos. O quarterback utilizou a sua visibilidade para protestar contra os inúmeros assassinatos de jovens negros por forças policias no país e assim, aos poucos o astro do esporte foi se consolidando como um ativista
Retornando à frase do início da matéria, ela foi dita depois de uma partida em 2016, em que Kaepernick se ajoelhou e recusou a cantar o hino dos Estados Unidos. Gesto que está sendo repetido até hoje no mundo todo com a campanha “Black Lives Matter” (vidas negras importam), movimento que já existia naquela época.
Em contrapartida, a reação da NFL e dos 49ers foram negativas em relação ao crescimento das manifestações do quarterback. O jogador foi alvo de críticas e não teve muito apoio da comunidade de jogadores do esporte, além disso teve o contrato rescindido com o 49ers e nunca mais voltou a jogar na NFL. Ao passar dos anos, as portas nunca voltaram a ser abertas.
Kaepernick protestou de forma legítima todas as vezes em que se manifestou. Em prol da igualdade racial, do fim da violência contra as populações negras e demais etnias, função essa, que o Estado de Direito dos Estados Unidos deve exercer todos os dias, com o intuito de promover uma sociabilidade voltada para a redução das desigualdades das mais variadas formas. Pois, como estado-membro da ONU, os EUA necessitam cumprir o que está previsto no Artigo 2º da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968): “Os Estados-partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a encorajar a promoção de entendimento entre todas as raças (…)”. No entanto, não foi o que vimos nos últimos anos nos EUA. A cultura do ódio tomou conta de um país que se diz exemplo em democracia. Podemos citar brevemente o caso George Floyd, Charlottesville e tantos outros. Quantos mais Angelos e Kaerpenicks terão que passar por isso?
‘SAQUINHO DE LIXO’
Casos como o de Kaepernick não são únicos e acontecem em qualquer lugar e a todo momento. No Brasil, o ginasta paulistano Ângelo Assumpção, 24 anos, negro e ex-atleta do Pinheiros, foi vítima de injúrias racistas pelos próprios companheiros de seleção brasileira durante uma concentração da equipe.
Em vídeo gravado e veiculado no aplicativo Snapchat e disponível no Youtube, os também ginastas Arthur Nory, Felipe Arakawa e Henrique Flores debocham de uma piada racista feita contra Ângelo: “Saquinho de supermercado? É branco! E o de lixo? É preto”. Em seguida, risada dos agressores e a indignação por parte de Ângelo, que se sente bastante desconfortável com a ofensa proferida pelos colegas de profissão. E não foi só isso, Ângelo também já foi alvo de piadas de motivações racistas vinda de treinadores e diretores esportivos do Pinheiros, em entrevista concedida ao El País Brasil.
Em busca de garantir seus direitos, o atleta procurou a cúpula do clube para prestar queixas e reclamar das condutas dos colegas. O Pinheiros pouco fez pelo atleta. O caso chegou também à Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), que decidiu por abafar o crime e maquiar a real situação na época. Em sua última queixa, Ângelo foi afastado por um mês, depois demitido por motivações “técnicas” e não teve nenhum tipo de amparo psicológico e financeiro. A família da vítima vê racismo na dispensa do atleta.
Sem apoio e desempregado, a jovem promessa da ginástica brasileira entrou em depressão e viu o sonho de ser campeão olímpico ficar cada vez mais distante. A vítima acabou se tornando vilã dos atos de seus agressores, que continuam impunes e ocupando o lugar de alguém que apenas queria sonhar mais alto.
Ângelo não quis levar o caso para a Justiça comum com medo de retaliações. Caso tivesse seguido adiante com as denúncias, fora do âmbito esportivo, o atleta poderia acionar elementos da Constituição Federal de 1988, mais precisamente no Artigo 5º , inciso XLII do documento, que define o racismo como crime e diz: “(…) a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Lembrando que, além do racismo, o atleta sofreu injúria racial, o que nos remete a consultar o Código Penal Brasileiro, Artigo 140, parágrafo 3º, em que quem cometê-la a pena estabelecida é de 1 a 3 anos de reclusão, além de multa, pois segundo o texto presente no CP: “(…) a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
NÃO ADIANTA NÃO SER RACISTA, TEM QUE SER ANTIRRACISTA
Em 2018, na comemoração dos 30 anos do slogan “Just do It” da Nike, Colin Kaepernick foi escolhido como um dos rostos da campanha especial da empresa americana. Naquela época, o atleta já estava afastado da NFL, e inclusive estava processando a liga por “uma conspiração que o estava mantendo longe dos campos”. Nos cartazes da campanha da Nike, o rosto de Kaepernick apareceu com frases fortes em alusão às ações do ativista contra o racismo.
A Nike tem contrato com Kaepernick desde 2011 e mesmo após a saída do jogador da NFL, a empresa continuou patrocinando. A campanha do “Just do It” também foi um divisor de águas, a empresa comprou a “briga” com alguns consumidores racistas que se recusavam a consumir produtos da empresa se ela continuasse apoiando a campanha antirracista dos atletas. Até mesmo o presidente Donald Trump se manifestou contra a Nike, mas o boicote não surtiu efeito. Após uma semana, a campanha com Kaepernick impulsionou as vendas da Nike em 31%, em relação à mesma época no ano de 2017.
Neste ano, a luta antirracista foi intensificada com protestos em todo o mundo, incluindo o mundo do esporte. Atletas da Fórmula 1 foram incentivados por Lewis Hamilton, jogadores de futebol de todas as partes do mundo, entre outros atletas que incorporaram a campanha. Nos Estados Unidos, a NBA permitiu que os jogadores utilizassem frases de protesto nas camisas durante a reta final da temporada em Orlando, na Flórida.
Aqui no Brasil muitos atletas também se manifestaram, mas da mesma forma que aconteceu com Ângelo Assumpção, muitos deles foram reprimidos pela sociedade brasileira e os casos foram vistos como “mimimi”. No esporte mais popular do país, o futebol, racismo é visto em diferentes camadas. Um dos casos que chamou atenção nesta temporada foi o do atacante Marinho, jogador do Santos, que após ser expulso de uma partida foi vítima de injúrias raciais do radialista Fábio Benedetti, da Rádio Energia 97, que afirmou que o jogador “é burro e estava na senzala”.
“Passo por isso na pele. A gente não pode deixar passar isso. É horrível. […] Eu sei o que eu sou. Sei o valor que eu tenho. Eu brigo pela causa porque tenho voz. E isso só mostra que quem não tem voz passa por coisa pior. A gente tem aceitado muito ainda. Justiça não pune os preconceituosos”, disse Marinho em um vídeo publicado nas redes sociais.
Casos que narram histórias de personalidades que todos os dias lutam por um mundo mais justo, igual e decente de se viver, mas que tiveram parte de suas carreiras interrompidas por terem sido vítimas de racismo ou por serem criticadas ao se manifestar em público. Kaepernick e Ângelo decidiram seguir em frente e não se calaram. Trouxeram o outro lado de como é viver em um ambiente rodeado de discriminação, dificuldades financeiras e, em alguns casos, falta de apoio. Respeito e dignidade dentro e fora do ginásio, do campo, na rua, nas lojas, é isso que está em jogo. Abaixo o racismo.
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