Reportagem: Vitória Pilar*
Edição e revisão: Luan Matheus Santana, Sarah F. Santos e Wilton Lopes.
Do interior de uma sala escura, com redes estendidas de ponta a ponta, surge Yamili Mendonza. Remexendo uma estante com bolsas que guardam suas roupas, ela tira uma cesta de miçangas, tecido colorido, material de costura e fios de náilon. Parte do material é do seu acervo pessoal, a outra é destinada à produção de colares, pulseiras, brincos, cestarias, redes e vestidos — os tradicionais chinchorritos, utilizados também para carregar bebês junto ao corpo da mãe. “Essas peças representam muito mais que beleza, fazem parte da minha cultura”, conta à reportagem.
Yamili é indígena venezuelana, da etnia Warao. Assim como sua mãe, sua avó e bisavó, aprendeu a manusear com habilidade os materiais que dão vida a uma técnica chamada Nasi, repassada secularmente pela sua comunidade que vive nas regiões ribeirinhas da Venezuela.
Mulheres que muitas vezes foram vistas nos sinais, carregando placas com pedidos de ajuda, manuseiam com habilidade os materiais do seu artesanato dentro dos cinco abrigos destinados para as comunidades de indígenas venezuelanos na capital que migraram devido uma crise econômica e humanitária vivida na Venezuela. Atualmente, cerca de 40 mulheres, que migraram para Teresina, geram renda e tentam dar uma nova perspectiva para suas famílias.
Yamili vive no Brasil desde 2019. Desembarcou inicialmente na capital de Roraima, Boa Vista. Também viveu em Manaus, no Amazonas, e em Santarém, no Pará. Chegou a Teresina há quatro anos, a convite de um primo que já havia chegado à capital piauiense. Nos abrigos de Teresina, viu a oportunidade de ensinar o que aprendeu desde criança. “Dentro das comunidades, o que fazíamos com a arte é um reflexo da natureza que vivia ao nosso redor”, explica Yalili, que fala sua língua nativa e espanhol e, aos poucos, está aprendendo o português.
A indígena lembra que sua arte é de inspiração ancestral de íntimo pertencimento à natureza. “Nossas peças têm os formatos das folhas, das ondas, do sol e da terra; nossas cores são o sangue, a água, os animais e nosso povo”, destaca Yamili, referindo-se aos vibrantes tons de vermelho, preto, laranja, amarelo e azul, predominante nas cores das peças.
As peças produzidas por Yamili e suas companheiras costumam variar entre R$10 e R$300, a depender da complexidade do artesanato e da quantidade de material. Toda renda é revertida integralmente para as artesãs e artesãos (há uma minúscula participação masculina entre tantas mulheres). Quem cuida da administração das peças, divulgação nas redes sociais, e conduz parcerias com universidades e instituições públicas ou privadas, é a Cáritas Diocesana, uma organização vinculada à Igreja Católica, que presta atividades de assistência social à população em situação de vulnerabilidade social. Hoje, o perfil no Instagram @projeto.warao é o principal canal para interessados em conhecer o projeto ou aderir às peças produzidas pelas indígenas.
Com quantas miçangas se faz uma artesã?
No Brasil, para ser considerado um artesão ou artesã, é necessário ter idade igual ou superior a 16 anos, produzir uma peça de matéria-prima única e também elaborar as fases dessa produção. Assim, é possível obter a carteira do artesão, uma documentação que garante a participação dos produtores em feiras nacionais (e internacionais), cursos no Sebrae, isenção de ICMS na comercialização de produtos e a possibilidade de ser contribuinte com objetivos previdenciários. No Piauí, é a Superintendência de Desenvolvimento do Artesanato Piauiense (Sudarpi) é quem faz o cadastro dos artesãos.
Em abril deste ano, a Cáritas entrou com um projeto para cadastrar as mulheres Warao como artesãs. No entanto, elas não ganharam a certificação. Segundo a Sudarpi, isto aconteceu porque durante a exposição das peças produzidas pelas indígenas venezuelanas, alguns critérios não haviam sido estabelecidos, como “uso da matéria-prima para a confecção das peças, a relação cultural local e a documentação pessoal de identificação válida no Brasil”, respondeu a superintendência, em nota enviada à reportagem.
A nota da Sudarpi explica ainda que: “foi sugerido ao representante a utilização de matérias-primas de origem local, como sementes, fibras naturais, cascas, madeira, dentre outros utilizados para formar e valorizar a criação original da peça”, detalha.
Hoje, no Piauí, são 2 mil artesãos com carteira atualizada e 6 mil cadastrados na Sudarpi. Uma realidade que ainda não faz parte da vida das mulheres venezuelanas. Apesar da negativa piauiense, há registros de artesãs indígenas venezuelanas residentes na Paraíba e em Roraima que já estão com suas carteiras em mãos. Agora, as indígenas venezuelanas têm tentado junto à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), formas de reverter o atual parecer no Piauí.
Um fazer ancestral do povo d’água
O ponto exato de onde muitos indígenas venezuelanos migraram para o Brasil é chamado de Delta do Amacuro, uma região no nordeste da Venezuela. Quem nasce ali, há mais de sete mil anos, é conhecido como “povo d’água” ou “povo da canoa”. É também ali que crescem, nas margens dos rios e córregos, imensas palmeiras de buriti, cuja fibra é a principal matéria-prima para a fabricação de suas peças de Nasi.
Refugiados no Brasil, os indígenas venezuelanos enfrentam dificuldades em encontrar fibra de buriti, recorrendo, portanto, a materiais acessíveis para a confecção de seus artesanatos, como miçangas e náilon.
Quando as mulheres se sentam no chão para trançar suas peças, estão também retomando a cultura que aprenderam em seu país de origem. “De uma perspectiva científica, interpretamos o artesanato como uma reafirmação da identidade dos povos Warao”, destaca Jéssica Lima, advogada popular e pesquisadora.
Para além da romantização, Jéssica ressalta o drama vivenciado por essa etnia que se espalhou pelo Brasil em busca de condições de vida. “Muitos sofrem com necessidades políticas e econômicas, moradias precárias e vivem em constante insegurança alimentar. Então, quando se oportuniza renda e promoção da integração socioeconômica, também se valoriza essa cultura”, complementa a pesquisadora.
Lucineide Rodrigues, coordenadora dos Abrigos, reconhece que, atualmente, a venda obtida pelas artesãs é insuficiente para garantir a renda das famílias. No entanto, com incentivo e aceleração desses negócios, é possível que elas conquistem cada vez mais a sua autonomia financeira, permitindo que administrem seus empreendimentos, desde a produção de conteúdo para vendas até a negociação direta das peças.
Para alcançar essa autonomia em todas as frentes de produção , elas estão recebendo capacitação em marketing, redes sociais e empreendedorismo, oferecidas pela própria Cáritas e por instituições parceiras. As famílias também estão matriculadas na rede estadual de ensino, nas escolas indígenas do estado, onde aprendem mais sobre a cultura brasileira e têm acesso à alfabetização trilíngue (português, espanhol e Warao).
Economia criativa como solução
Não se sabe exatamente como os indígenas venezuelanos chegaram a Teresina. Relatos da própria população indicam que muitos saem da Venezuela utilizando transportes pagos, caronas, e até mesmo a pé. Alguns chegam a caminhar mais de 200 quilômetros até Boa Vista, capital de Roraima, pelas margens da Rodovia 174. A partir desse ponto, eles tentam estabelecer contato com parentes e amigos, e migram internamente pelo Brasil em busca de melhores condições de vida.
Em um documento assinado pelo do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e da Agência da Organização das Nações Unidas para as Migrações (OIM), cerca de 13 etnias diferentes migraram do país de origem para o Brasil, sendo a Warao a de maior fluxo, desde 2014. Dentre os principais motivos para a migração, estão a busca por emprego (27%) e atendimento médico (18%).
O documento também evidencia que outros 18% dos venezuelanos vieram para reunir suas famílias, seguindo o mesmo fluxo migratório internacional ao Brasil. Pela proximidade geográfica e acesso às políticas públicas de assistência social nos municípios, hoje, boa parte das famílias vivem em cidades nordestinas e nortistas.
Com as dificuldades de idioma e documentação, enfrentam muitas barreiras para ingressar no mercado de trabalho formal. Como resultado, recorrem a uma atividade chamada “coleta”, uma prática tradicional dos povos Warao na Venezuela. A coleta envolve recolher recursos naturais, como alimentos, plantas medicinais e outros itens essenciais para a vida cotidiana e a manutenção das práticas culturais. Nas suas comunidades, isso era feito em florestas, montanhas, savanas ou comunidades vizinhas. “No Brasil, eles acabam recorrendo aos sinais de trânsito. Diferente da cultura deles, aqui, essa atividade é considerada como mendicância”, explica Lucineide Rodrigues.
Demorou alguns anos desde a chegada dos primeiros indígenas Warao ao Brasil para que o artesanato produzido por eles fosse percebido como uma fonte de renda em potencial. Suas peças, originária de uma cultura singular, também podem ser inseridas no setor das economias criativas. Nesse campo, somente o artesanato brasileiro, hoje, representa 3% do PIB (Produto Interno Bruto). Socorro Portela, gestora do artesanato do Sebrae Piauí, explica que esse setor é representado por quase 8,5 milhões de mulheres.
“A maior dificuldade que os artesãos possuem hoje é de se reconhecer como empreendedores. Isso vai criando barreiras sobre aquilo que eles precisam ter para se articular o seu negócio enquanto negócio”, destaca Socorro. “O fazer manual tem sido cada vez mais valorizado, a ancestralidade tem sido um assunto cada vez mais presente no nosso cotidiano. Essa identidade cultural, quando aplicada ao empreendedorismo, é capaz de mudar realidades, garantir sustentabilidade e a renda de muitos artesãos e artesãs”, complementa.
Estimular cooperativas, associações, ou grupos de trabalhos, é uma das formas de fortalecer os artesãos dentro da economia criativa. Isso propicia acesso aos insumos de trabalho, acesso ao crédito, e capacitações para gerir o seu negócio. “O artesanato é conhecido como um dos home offices mais antigos do mundo”, pontua Socorro. “Mais é muito mais que isso: é fornecer renda para sua família, empoderamento das mulheres e autonomia, seja financeira ou social, dessas mulheres dentro das suas comunidades”, finaliza a gestora de artesanato do Sebrae.
As perspectivas analisadas por Socorro são o futuro que Yamili sonha. Ela, que já é uma artesã experiente, quer receber sua carteira em breve. Com a certificação em mãos, ela poderia viajar como expositora em feiras nacionais e levar suas peças para outras cidades. A mulher tem um propósito muito maior: viajar pelo Brasil para encontrar outras indígenas venezuelanas para poder ensinar a Nasi. “Existirá um dia em que não precisaremos mais estar nos sinais fazendo coleta, que vamos ser respeitados por nossa cultura e nossas tradições”, conta a mulher. “E esse caminho será traçado por nós, a nossa arte, das mulheres indígenas venezuelanas”.
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* Vitória Pilar é jornalista. Repórter com textos publicados na Revista Piauí, Revestrés, Uol e G1-Pi. Autora de
“Prostituta é Comunidade: uma mulher que fez do sexo ganha-pão e luta (Ed. Arisca, 2023).
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