Se, nos dias de hoje, como nos lembra a fotógrafa Suzana Pires, a fotografia ainda é dominada por homens e profundamente desigual (em termos de oportunidade, salários e destaque), imaginemos como era há 80 anos? Qual lugar social era imposto às mulheres daquela época? Nesta grande-reportagem, produzida por estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), vamos embarcar em viagem no tempo, para conhecer a história e trajetória de uma mulher que revolucionou o cenário fotográfico da região, quebrou regras e padrões para se impor e conquistar um lugar de destaque na história do Cariri, do Ceará e do Brasil. O nome dela, não esqueçam, é Telma Saraiva!
Telma representa o olhar feminino na construção da memória da Região do Cariri. Reconhecida em exposições dentro e fora do país, ela foi precursora na arte da fotografia pintada à mão na década de 1940. À frente de seu tempo e pioneira neste tipo de arte, era a única mulher a ter seu próprio estúdio fotográfico no município de Crato, no cariri cearense, o Foto Saraiva.
O trabalho da artista se destaca pela singularidade de detalhes e cores dadas à fotografias antes vistas somente em preto e branco ou sépia no Cariri. Era a partir da revelação dos negativos em sépia que era realizada a pintura por cima da fotografia. Diferente da maioria das fotopinturas ao redor do mundo, as de Telma eram feitas à base de tintas à óleo.
A fotopintura
A fotopintura surgiu em 1863, ela foi desenvolvida pelo fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri. No Brasil, essa técnica chegou ao auge na década de 40, sendo utilizada principalmente por famílias com alto poder aquisitivo. O Nordeste é a região em que a fotopintura teve mais sucesso. Simbólicas, as fotos pintadas à mão denotavam tradição e memória familiar. Ítens que fazem parte da cultura brasileira, mas que perderam força diante dos adventos tecnológicos como a colorização digital e as fotografias à cor.
Autorretratos e expressão
Além de fotografar clientes, Telma fotografava a si própria. Ela construiu uma série de autorretratos pintados baseados na linguagem cinematográfica, explorando diversas interpretações de si mesma ao longo da sua vida. Ao todo são cerca de 30 autorretratos, que já fizeram parte de diversas reportagens e filmes. O autorretrato é uma forma antiga de representação, presente em diversas épocas e segmentos artísticos.
Autorretratos feitos por Telma Saraiva expostos no Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva. Fonte: JR Panela/Divulgação.
A partir da composição dos autorretratos, a artista representou a feminilidade, junto à referências vindas de Hollywood e da publicidade da época. Ao se colocar como personagem em suas obras, ela performou várias versões de si como mulheres diferentes. Conforme um texto da organização “Vermelho” escrito pela neta de Telma, Roberta Rocha, ela antecedeu a fotógrafa norte-americana Cindy Sherman em trinta anos. Sherman é considerada um dos maiores nomes contemporâneos na temática do autorretrato.
“Todas as vidas de Telma” em uma sociedade machista e patriarcal
Ano passsado (2022) ocorreu o lançamento do documentário “Todas as Vidas de Telma” realizado pela professora da Universidade Federal do Cariri (UFCA) Adriana Botelho. O filme é uma homenagem à memória da artista. De acordo com Adriana, as composições feitas por Telma Saraiva podem ser vistas como transgressoras para aquele tempo. Ela leva em consideração a situação de submissividade que as mulheres estiveram colocadas por séculos, sendo relegadas ao ambiente doméstico e subalternas ao poder das figuras do pai e do marido.
Segundo dados obtidos por uma pesquisa do IBOPE, o machismo é o preconceito mais praticado no Brasil, e está presente no cotidiano de 99% da população. O protagonismo de Telma Saraiva em uma sociedade majoritariamente machista e patriarcal é emblemático, principalmente tendo em vista a época em que ela atuava. Isso a fez quebrar diversas barreiras, pois, apesar de seu pai ser fotógrafo, ela conseguiu obter reconhecimento a partir do seu trabalho e continuar nesse ofício.
Outra homenagem recente feita à fotógrafa foi o Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva, uma iniciativa do Sistema Fecomércio, SESC. Com intuito de eternizar a importância do trabalho desenvolvido pela artista, ele foi inaugurado em 2021. O espaço reúne uma exposição de fotografias, além de contar com objetos que fizeram parte dos bastidores. O museu é o primeiro com homenagem póstuma no Estado do Ceará. O antigo estúdio Foto Saraiva funciona hoje como um espaço para visitação, ambientado na casa onde morou Telma, no centro da cidade de Crato.
História e trajetória da fotopintora
Maria Telma Saraiva Rocha nasceu em 14 de julho de 1928 no Crato e faleceu em 2015. Filha do fotógrafo Júlio Saraiva, ela já vivia rodeada pela arte da fotografia dentro de casa e logo se interessou pelo ofício. Por conta do pai, que foi um dos primeiros fotógrafos da cidade, ela teve grande influência dos campos artísticos em sua época.
Essa influência ajudou na construção do olhar artístico que a permitiu não somente apreciar as artes, mas também crescer como uma autodidata na pintura de fotografias à mão. O seu interesse por desenho quando mais nova colaborou de certa forma para juntar à pintura com a fotografia anos depois. Em uma entrevista à TV Casa Grande ainda em vida, Telma afirmou que fazia desenhos a lápis de cor imitando fotografias de artistas de cinema.
Ao iniciar o processo de colorização de fotos, ela tentou reproduzir o efeito de cor apresentado nas antigas cartelas de sabonete raspando o pó dos lápis de cor. Posteriormente, com a ajuda do irmão, ela pôde comprar dos Estados Unidos o seu primeiro estojo de tintas Marshall. A partir da utilização das tintas à óleo o trabalho da artista começou de fato.
Pela habilidade de execução que faziam com que suas fotopinturas ganhassem reconhecimento e popularidade, Telma se destacou como artista. Apaixonada pela arte, ela fez diversos retratos ganharem vida ao adicionar cores e sombras detalhadamente, antes de haver tecnologia disponível no interior do Ceará para realizar fotos coloridas. O trabalho de Telma é significativo pela descoberta das cores dentro do seu viés artístico e por trazer essas cores de forma bem trabalhada.
A sua trajetória se inicia a partir de se inspirar no pai e, posteriormente, começar a fotografar no estúdio dele, o Photo Riso. Após casar com o também fotógrafo Edilson Rocha, ela fez da sua casa o seu novo estúdio. Com mais de cinquenta anos dedicada à fotografia, Telma faleceu aos 86 anos de idade.
Legenda: Visita guiada ao Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva. Fonte: Vitória Pinheiro
O Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva foi inaugurado no dia 13 de novembro de 2021 em Crato. Ele realiza um dos sonhos que a artista tinha em vida, de ter a história do seu trabalho e trajetória alcançando cada vez mais pessoas e inspirando aqueles que o visitam. O formato orgânico foge do padrão dos museus tradicionais encontrados por aí a fora, assumindo uma dinâmica de visitação interativa que proporciona um mergulho na obra e vida de Telma Saraiva.
A representatividade e relevância de Telma é mostrada através do museu para todos que se permitem mergulhar na visita. A existência desse espaço, como homenagem e perpetuação de um legado construído por uma mulher em uma época mais opressora que os dias atuais, também é um símbolo de resistência e inspiração para a luta feminina na conquista de mais visibilidade para a vida e obra de mulheres brasileiras.
O espaço fica na casa onde a artista morou e traz uma composição fiel de como ela viveu, contando até mesmo com cômodos montados da mesma forma que eram nos dias em que Telma ainda estava presente. O quarto onde ela dormia com o esposo e o de sua filha estão inclusos na exibição, além do estúdio em que ela trabalhava.
No local é possível não só aprender e conhecer mais sobre a vida profissional da artista, mas de todas as suas versões: Telma como mãe, como filha, como esposa, como estudiosa da fotografia, e tantas outras faces que compõem o todo que ela foi e permanece sendo por meio das memórias e da história que construiu em vida. Uma referência para todas as mulheres, em especial, para as que almejam consolidar uma carreira na fotografia.
A visita ao museu é agendada através do contato encontrado no perfil do Instagram (@casadetelmasaraiva) e os visitantes são guiados por um dos filhos de Telma, Ernesto Rocha. Ele é guia de turismo e foi um dos idealizadores do museu orgânico, que possui apoio do SESC. Durante todo o trajeto, Ernesto conduz a narrativa sobre a vida e obra de sua mãe de forma única para cada visitante, pois é a curiosidade e as perguntas de cada pessoa que dirigem a explicação sobre fotografias, equipamentos e objetos presentes no museu.
Todas as peças e detalhes que compõem o ambiente trazem um ar de familiaridade e proximidade com a artista. Ouvir a história sendo contada de forma a parecer que se está dentro dela, revivendo os momentos narrados e conhecendo não só visualmente, mas também emocionalmente os espaços e as memórias carregadas de afetos da grande Telma Saraiva.
Amanda Shofia Alves Batista Braga (21), aluna do terceiro semestre do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri, visitou o museu no dia 30 de novembro de 2022 através da disciplina de Fotografia ministrada pela Professora Elane Abreu. Em relato, a estudante afirma que o trabalho de Telma Saraiva carrega uma singularidade que apenas a artista possuía. Ela também ressalta o caráter cinematógrafo do acervo de autorretratos construídos pela artista. Ouça o depoimento completo:
De acordo com Amanda, o fato de que a produção do cenário, a costura das roupas e a elaboração da maquiagem serem todos feitos pela fotógrafa é algo muito interessante, principalmente para a época em que ela vivia.
Legenda: Fachada do Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva. Fonte: Vitória Pinheiro.
Filme “Todas as Vidas de Telma”
Legenda: Gravações do filme “Todas as vidas de Telma”. Fonte: Jornal do Cariri.
Entender a história da fotógrafa cratense se tornou ainda mais apaixonante graças ao documentário “Todas as vidas de Telma”, lançado neste ano. O projeto é dirigido e roteirizado pela professora da Universidade Federal do Cariri, Adriana Botelho. Sendo uma fusão entre documentário e ficção, o espectador é guiado por uma narrativa que expõe o que há de mais importante para compreender o peso da figura de Telma Saraiva: sua inventividade rebelde.
Ana, personagem protagonista do filme, é uma pesquisadora de arte imposta ao desafio de desvendar a obra de Telma Saraiva através de uma investigação profunda de sua biografia. Entre cortes e sobreposições, é possível assistir aos relatos reais de familiares, amigos e outros diversos companheiros. A jornada em que Telma iniciou sua vida artística foi marcada por rupturas profundas aos costumes da época.
Protagonista em uma sociedade marcada pelo machismo, Telma enfrenta desafios desde cedo, ao imprimir sua identidade visual na profissão que herdou conflituosamente de seu pai. Para a equipe do filme, a produção se torna importante porque “eternizar uma mulher transgressora da sua geração é um trabalho rico e árduo, transpassar sua história para audiovisual é possibilitar que as próximas gerações conheçam a sua obra para além do formato físico”.
O longa foi possível graças ao edital de incentivo ao Audiovisual Cearense da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, através da Lei Aldir Blanc. Tendo origem na tese de doutorado da diretora, o filme “Todas as vidas de Telma” pode ser visto como um trabalho de mais de 10 anos. Tendo sua construção sido interrompida em 2015, devido a morte da artista retratada. Apesar do ocorrido, a equipe conseguiu registrar não somente os depoimentos da própria Telma, como de outras figuras fundamentais para o imaginário caririense, como Madre Feitosa, educadora e professora de Telma; Abdon, um dos últimos fotopintores de Juazeiro do Norte; e Padre Ágio, músico e educador renomado na história do Crato.
Além da direção, a roteirização ficou a cargo de Adriana Botelho em parceria com Reneude Andrade, ainda contando com a participação de Glícia Gadelha na produção executiva; Ivo lopes na direção de fotografia; a edição foi feita por Francisco Benevides; Rodrigo Frota na direção de arte, e a produção de Nayara Moura.
Em razão da importância de seu legado, Telma Saraiva se tornou fonte de inspiração para as futuras gerações de fotógrafos caririenses, principalmente para mulheres que desejam ingressar na área. Em entrevista concedida à nossa equipe, Adriana Botelho conta sobre a sua inserção dentro do universo da artista para produção do documentário, além do desafio de retratar uma personagem histórica e complexa como Telma. Assista a entrevista completa:
[VIDEO:Entrevista com Adriana Botelho, diretora do documentário “Todas as vidas de Telma” ]
Créditos da entrevista (vídeo): Guilherme Carvalho e Gabriela Bernardo
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