Desde o início da quarentena vimos que as cidades passaram a funcionar apenas com os serviços ditos essenciais, os quais vêm garantindo que a maioria da população permaneça em suas casas. Neste grande recorte, são privilegiados aqueles que podem cumprir o isolamento. Aos que não têm essa opção cabe arriscar-se pela cidade infectada. Precisamos refletir: existem condições seguras para que a população fique em casa? Quem são as pessoas sem o direito ao isolamento digno? A cidade futuro existe?
O ano de 2020 não foi um dos melhores para Teresina e explanou uma cidade onde aproximadamente 35% de sua população vive em situação de pobreza ou abaixo da linha da pobreza e onde 15,20% (70 mil pessoas) das pessoas estão desempregadas, sendo a 4ª capital no ranking nacional, segundo dados do IBGE/PNAD de 2019.¹ Tais dados que já são bastante preocupantes em um contexto de normalidade tornam-se ainda mais alarmantes frente à pandemia. De acordo com dados do Atlas Político desta quarta-feira (16) 51,6% dos brasileiros afirmam que já perderam parte da renda por conta da crise.
Mesmo com as medidas restritivas adotadas pelo poder público, paralelo ao agravamento da crise acompanhamos a queda nos índices de isolamento social. Nesta quarta (15), a cidade apresentou seu pior índice, com apenas 47% da população em isolamento, quando o ideal recomendado seria de 73% (dados do monitoramento por aplicativo de 217 mil celulares na capital). Nos últimos dias, aglomerações de pessoas se formam na porta da Receita Federal, lotéricas e bancos em busca da regularização de documentos e recebimento de auxílio; nas comunidades se multiplicam as ações de solidariedade, mais preocupadas em combater a fome diária. Na falta do básico, o isolamento não é uma possibilidade.
Tomando por medida as condições básicas para garantia do isolamento e da segurança sanitária – dependente do acesso à água potável, saneamento básico, banheiro na residência e coleta de lixo, para citar os serviços básicos – a cidade de Teresina está diante de um desafio ainda maior, exposto pelo acúmulo das desigualdades locais.
No que se refere ao acesso à água potável, principal item para garantia de higiene visto que lavar as mão é a medida básica de proteção, compartilhamos uma cidade em que 45 mil pessoas ainda não possuem acesso à água tratada, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento – SNIS de 2018. São 5 mil pessoas na zona urbana do município e outras 40 mil na zona rural.
No fim do ano passado chegamos a 23,74% da população com atendimento de coleta e tratamento de esgoto. Por isso, a inesperada pandemia encontrou uma cidade de 860 mil habitantes onde pouco mais de 200 mil têm acesso a esse serviço; 39 mil pessoas ainda não contam com serviço de coleta de lixo, de acordo com informações do ObservaThe da Agenda 2030 da Prefeitura de Teresina.
Espacializando, a realidade indica onde a vulnerabilidade reside e onde historicamente se optou por fazer os investimentos públicos, revelando uma cidade que seguiu os métodos viciados de concentração de infraestrutura enquanto à uma imensa maioria não é garantido o mínimo.
Não era necessária a chegada desta doença para alertarmos tais dados. No último censo do IBGE de 2010 os números por si revelavam que a população teresinense vivia distante das condições dignas de vida, cenário em que apenas 69% da população urbana dispunha do mínimo existencial. Na zona rural, somente 8,3% das moradias detinha as condições do considerado básico pelo Plano Nacional de Saneamento. Na época, 131 mil pessoas viviam em aglomerados subnormais (vilas, favelas e ocupações) e 40 mil domicílios ainda não possuíam banheiro!
Desde 2015, com o congelamento do perímetro urbano do município de Teresina ( Lei nº 4.831/2015) que limitou o alcance da infraestrutura urbana obrigatória por parte do poder público municipal, as desigualdades entre zona urbana e zona rural pioraram já que até o momento ainda não foram estabelecidas políticas públicas específicas de combate a mais essa desigualdade socioterritorial.
Antes da constatação de que saneamento é um problema unânime nas cidades brasileiras, é lamentável informar que, no caso de Teresina, tal situação calamitosa foi uma opção do poder público. De acordo com os dados do Instituto Trata Brasil (2019), Teresina investiu R$ 47,57 milhões na cobertura de saneamento básico no período de 5 anos, o que fez da capital a segunda que menos investiu em saneamento entre as capitais brasileiras. Não por falta de dinheiro, já que Teresina, que é uma capital e recebe mais recursos que cidades como Taubaté (SP), Campina Grande (PB), Vitória da Conquista (BA) e Niterói (RJ), cidades cuja opção foi pelo alcance da universalização da água e pelo exitoso avanço no alcance desta meta em esgoto, de acordo com o SNIS. ²
O que tudo isso significa? Primeiramente significa que não vivemos em uma ‘Cidade Futuro’, pelo contrário, estamos ainda muito distantes disso; nas periferias os números são às condições de vida da média brasileira do século passado. Nossa situação é de uma cidade pobre e em extrema vulnerabilidade, maquiada por um histórico de urbanismo higienista que não garantiu salubridade ao seu povo. Na prática, o mito da cidade moderna ergueu uma cidade invisível onde a miséria escancarada agora expõe sua realidade. Os piores índices aqui apresentados apontam que, por baixo, 200 mil pessoas em Teresina vão encarar essa pandemia sem as condições mínimas de proteção.
Num cenário que não nos permite esperar pelas promessas da teresina 2030, aproveito para compartilhar algumas ações emergenciais que vem sendo adotadas em cidades pelo Brasil³; propostas práticas que superam o simplismo do #Fiqueemcasa:
- Construção de reservatórios para acesso emergencial à água potável em áreas onde o serviço público ainda não está disponível;
- Distribuição de caixas d´agua em domicílios que não contam com abastecimento contínuo;
- Distribuição de água por meio de caminhões pipa, com garantia de qualidade da água;
- Instalação emergencial de torneiras e banheiros em espaços públicos;
- Isenção das tarifas de águas, energia e taxa de coleta de lixo para as famílias em situação de pobreza, desempregadas e chefiadas por mulheres;
- Instalação de banheiros pré-moldados e equipamentos sanitários em domicílios que não possuem;
- Construção de infraestrutura mínima para escoamento de esgoto.
Não fomos pegos de surpresa, afinal nunca superamos o histórico estado de calamidade pública em que vivemos. Não é uma crise passageira, é um acúmulo das desigualdades que vivíamos nas cidades, hoje agravadas por uma pandemia e cuja superação, mais uma vez, dependerá da resistência e solidariedade comunitária.
Por hora, se puder, fique em casa.
¹ Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira
² Saneamento básico como dignidade humana: Entre o mínimo existencial e a reserva do possível
³ Direito à água em tempos de pandemia da COVID-19
Por Luan Rusvell. Arquiteto Urbanista / Assessor Popular pelo Direito à Cidade
Foto: Kelson Fontinele. @cidadeobservada
Comments (1)
A saúde não vai bem em Teresina: um diagnóstico a partir do transporte públicosays:
1 de setembro de 2020 at 12:29 PM[…] O SUS – Sistema Único de Saúde, apesar de todos os seus problemas, é nosso melhor exemplo de sistema coletivo integrado e, de fato, público e gratuito e que vem provando sua eficácia ao que se propõe: democratizar o acesso a saúde. No entanto, uma das lições da atual pandemia é que a eficácia do SUS depende de uma rede muito mais ampla de prevenção e combate, que inclui desde condições de higiene dentro de nossas casas, o acesso à água tratada e ao sistema de saneamento básico. Sobre isso, vínhamos discutindo como a cidade de Teresina acumula uma negligência histórica na garantia desses serviços básicos de saúde. Nesta cidade, existem ainda 45 mil teresinenses sem acesso à água tratada, 40 mil domicílios sem banheiro e a escandalosa marca de aproximadamente 76% dos domicílios sem atendimento à rede de esgoto. Leia aqui […]