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Teresina cristalina de sangue: Lagoas do norte, políticas de exclusão e o eterno retorno

No aniversário de Teresina, nossa querida Teresinha Cristina, o doutorando em Antropologia Social, Lucas Pereira, nos chama atenção para nossos direitos nesta capital sedenta de insurgências. Amamos e defendemos essa cidade, por isso não fechamos os olhos diante do óbvio. Confira o texto a seguir e sigamos em defesa de nossa gente e de nosso patrimônio.

Texto: Por Lucas Coelho Pereira (Estudante do Curso de Doutorado em Antropologia Social da Unb e teresinense aguerrido)

 

Antônia – Você precisava ver o projeto que mostraram pra gente, não tem nenhuma casa nossa aqui não! É condomínio, é ponto turístico, se você vê, é a coisa mais linda…

Margarida – Porque eles querem tirar pra botar só os ricos! Pra fazer hotel, essas coisas tudo! Mas não tem nossas casas!

Seu Martim – Olha, Lucas, essa terra aqui, essa terra aqui todinha se chama o novo Jockey! O que foi mesmo que eles disseram lá, rapaz…[…] Falaram que essa terra aqui é uma terra nobre! Essa terra aqui é uma terra muito rica! É por isso que eles querem tirar o povo daqui. […]

Manoel1 – Olha, eu tenho percebido que os vazanteiros estão sendo expulsos dessa área… Antigamente eram os índios e eles tiraram na bala, hoje eles querem tirar a gente com a lei.

Estes diálogos são trechos de uma oficina que realizei com vazanteiros e vazanteiras da Avenida Boa Esperança em 2016, quando realizava trabalho de campo para minha dissertação de mestrado em antropologia social. Estes/as agricultores/as me contavam o que haviam escutado em reunião organizada pela Prefeitura Municipal de Teresina sobre o “Programa Lagoas do Norte”. Diziam da triste surpresa de saber que suas casas seriam retiradas e suas famílias desapropriadas para dar lugar a um grande complexo turístico e de negócios. Esta não é uma percepção equivocada dos moradores com relação ao Programa, pois tem sido amplamente difundida por técnicos e gestores públicos2.

Neste 16 de agosto de 2018, Teresina completa 166 anos e o que hoje chamamos de Zona Norte tem sido um importante lugar de “negócios” para as elites administrativas locais. Historicamente, estes “negócios” têm custado a vida dos moradores da Zona Norte. A fala de seu Manoel evidencia que tanto ontem quanto hoje a expropriação territorial tem sido a tônica das relações entre o estado e a região norte da cidade. A Zona Norte tem servido de outro mal-dito a ser extirpado para que uma Teresina íntegra, limpa e bela se constitua. O primeiro grande “negócio” neste sentido foi a própria criação da cidade.

A história é antiga e mastigada: quando José Antônio Saraiva andou pelas bandas do Poty, gostou do lugar e teve a ideia de transferir a capital da província de Oeiras para Teresina. Dizem que ele se agradou muito da proximidade com os rios, pois iria proporcionar um grande intercâmbio da cidade com outras regiões. Contudo, digamos que ele “gostou-não-gostando” e eu vou explicar o porquê. Naquela época, seu Saraiva percebeu o imenso potencial navegável do Parnaíba e do Poty, mas olhou cheio de nojo para a região do Encontro dos Rios.

A administração local descreveu a barra do Poty como insalubre, sujeita a enchentes, febres endêmicas e pareceu gostar menos ainda das pessoas que moravam lá3. Tanto ontem como hoje, o lugar era habitado por pescadores/as, vazanteiros/as, negros/as, indígenas e seus descendentes. Gente que as elites brasileiras (mas não só) costumam chamar de “pobre sem costume”. Diante disso, Saraiva decidiu edificar a cidade onde hoje está a Praça da Bandeira, a seis quilômetros dali. À época, essa distância era mais do que suficiente para apartar a Teresina nascente do que viria a ser Poty Velho, Mafrense, Boa Esperança, Memorare, Santa Maria da Codipi e vários outros bairros. A Teresina-cristalina-em-chão-agreste se fez (e se faz) virando as costas para a Zona Norte e seu povo. Saraiva levava a cabo um projeto racista de cidade, mantendo pretos e pobres bem distantes de certos serviços e equipamentos públicos, mas relegando-os a condições de vida e trabalho extremamente degradantes: era da Zona Norte que saia o barro e a mão de obra oleira que ajudou a edificar todos os prédios públicos teresinenses.

À época do presidente José Antônio Saraiva, o “potencial de negócios” da Zona Norte se expressava nas suas ricas jazidas de argila e na abundância de trabalhadores para “contribuir” no processo de construção da cidade. Se o lugar era descartável para a edificação de Teresina, as pessoas eram extremamente desejáveis enquanto mão de obra para a realização desta tarefa.

Hoje, um projeto de desenvolvimento urbano como o Programa Lagoas do Norte (PLN) re-focaliza a Zona Norte como “lugar potencial de negócios” e confere algumas atualizações a esta lógica. Boa parte das benfeitorias e serviços públicos ofertados pelo PLN são reivindicações históricas dos teresinenses da zona norte: melhorias nos sistemas viários e de macro e micro drenagem urbana, habitações de qualidade, construção de espaços de lazer, garantia de emprego e renda, dentre tantos outros direitos sociais e culturais. Porém, quando estas demandas parecem finalmente terem sido ouvidas, a Prefeitura Municipal de Teresina/Banco Mundial/Governo Federal colocam como “condição técnica” para sua execução a desapropriação compulsória daqueles/as que lutam por melhores condições de existência em seus locais de vida e morada. Os habitantes são tratados, portanto, como empecilho para a realização do projeto, ao passo que as terras da Zona Norte tornaram-se as mercadorias mais desejáveis da vez. Tanto os Saraivas de ontem quanto os Firminos Filhos de hoje dizem em alto e bom tom: certas pessoas devem ser escarradas e mantidas longe da Teresina que se pretende nobre, branca, bela e civilizada.

Desde o início dos anos dois mil, quando o Programa Lagoas do Norte teve início, o “grande negócio” da Prefeitura Municipal de Teresina em parceria com o Governo Federal e o Banco Mundial tem sido desapropriar milhares de homens, mulheres e crianças majoritariamente negras. Para a execução da segunda fase do programa estima-se que, pelo menos, três mil famílias sejam expropriadas sob a justificativa de estarem assentadas em uma área ambientalmente de risco. Os Relatórios de Avaliação Ambiental emitidos pelo PLN jogam com a noção de risco a fim de culpabilizar moradores e moradoras da Zona Norte por uma série de precariedades estruturais e pela ausência sistemática do estado no fornecimento de serviços e equipamentos públicos na região4. Os habitantes locais são destituídos de sua importância como mantenedores históricos dos ecossistemas ribeirinhos e passam a ser vistos unicamente como aqueles que depredam e poluem. Espécies de vítimas e algozes de si mesmo. Diante deste cenário, as desapropriações aparecem como salvação e única alternativa possível a uma série de descaminhos sócio-ambientais. Por que não investir em uma zona norte para as pessoas continuarem vivendo nela? Como diria seu Martim: “Essa terra aqui é uma terra muito rica! É por isso que eles querem tirar o povo daqui. […]”. Cientes da alta especulação imobiliária sobre seu território, moradores e moradoras vem denunciando o genocídio perpetrado pelo estado.

Existem inúmeras formas de matar, a bala é apenas mais uma. Tirar a possibilidade de vazanteiros e vazanteiras de cultivarem suas vazantes na beira do rio, proibir artesãs de extraírem argila para a feitura de suas peças, limitar o acesso de pescadores e pescadoras às águas do rio são crimes que ferem de morte o povo da região. As terras e o território da Zona Norte não são negócios, são vida! Como confiar no “desenvolvimento” de um Programa cuja política está assentada na expropriação territorial da própria vida?

Teresina não foi criada sob o signo do progresso e da modernização. A história que aprendemos era mentira e até hoje fingimos não nos dar conta disso. Nascida sob a égide do genocídio e da segregação étnico-racial, Teresina continua reproduzindo a mesma lógica que lhe deu origem. Termino esta reflexão com a fala potente de Lúcia de Oliveira Sousa, uma das maiores intelectuais negra e ativista pelos direitos humanos que Teresina já viu:

– Esse prefeito [Firmino Filho] quer tirar todo mundo de lá, mas só que nós não vamos deixar! Porque a nossa força e a nossa raça não permite! Porque ali está a descendência indígena e a descendência negra daqui de Teresina! A nossa raiz é ali! Nós somos filhos de Nanã, o primeiro orixá, o barro que construiu essa cidade! O barro da Zona Norte, a mão oleira da Zona Norte construiu a cidade de Teresina […] Quem é mais antigo aqui sabe! Se você passar de avião em cima dessas casas mais antigas aqui do centro, você vai ver! Essas telhas foram construídas por aqueles oleiros! E sabe como é que essas telhas eram construídas? Na cocha! Os oleiros construíam na cocha! Bem aqui na Igreja São Benedito, aqueles tijolinhos que tem bem ali foram construídos pelos oleiros da zona norte, na mão! De quem será aquela mão que passou naquele tijolo? Então, a gente está aqui para denunciar! E aonde a gente for a gente vai denunciar sim, porque nós temos raízes e temos coragem, por que foi assim que nós aprendemos: lutando!5

Brasília, 16 de Agosto de 2018

1 Os nomes originais foram trocados.

2 Para algumas análises acadêmicas a respeito dos processos de planejamento e execução do Programa Lagoas do Norte, ver: Carmo (2017), Monte (2016), Souza (2017) e Coelho Pereira (2017).

3Para referências a respeito do processo de criação da cidade de Teresina e dos primeiros povoadores do que, hoje, chamamos de Zona Norte ver: Cardoso e Dourado (2003), Chaves (1998), Machado (2002), Melo (1993), Baptista (2009), Lima (2014), Moraes (2013) e Silva (2008).

4 Para análises a respeito da noção de risco entre consensos e dissensos entre Programa Lagoas do Norte e moradores, ver: Coelho Pereira (2017), Monte (2016) e Rusvell (2018)

5 Arquivo do pesquisador. Transcrição da fala de Lúcia Sousa no “Grito dos excluídos” ocorrido em setembro de 2016.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, J. G. Etno-história indígena piauiense. Teresina: APL/ FUNDAC/DETRAN, 2009.

CARDOSO, C. M. S; DOURADO, J. M. S. Perfil dos trabalhadores em olarias do Mafrense. Cadernos de Teresina, Teresina, ano 8, n. 16,p. 70-75, abr. 2003.

CARMO, F. D. S. Povos de terreiro no contexto de intervenções urbanísticas: Territórios sociais de religiosidades de matrizes africanas na zona Norte de Teresina-PI e o Programa Lagoas do Norte – PLN. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2017.

CHAVES, M. Obra Completa. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998

COELHO PEREIRA, L. Os reis do quiabo: meio ambiente, intervenções urbanísticas e constituição do lugar entre vazanteiros do médio Parnaíba em Teresina – Piauí. Brasília: UnB, 2017. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de Brasília, 2017.

LIMA, S. O. (Org.) Fiéis da ancestralidade: comunidades de terreiros de Teresina. 1. ed. Teresina: EDUFPI, 2014.

MACHADO, P. H. C. As trilhas da morte: extermínio e espoliação das nações indígenas piauienses. Teresina: Corisco, 2002

MELO, C. Teresina e seus primeiros povoadores. Cadernos de Teresina. Teresina, nº 15, pp. 12-15, dez. 1993

MONTE, C. N. C. Artesanato ceramista e direitos culturais frente ao Programa Lagoas do Norte no Poti Velho em Teresina-PI: quais diálogos? Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2016.

MORAES, M. D. C. Artesanato cerâmico no bairro Poti Velho em Teresina- PI: (rede sociotécnica, agenda pública, empreendedorismo e economia criativa). Monografia de conclusão de curso. (Curso de Formação de Gestores Culturais dos Estados do Nordeste). Universidade Federal Rural de Pernambuco/ Fundação Joaquim Nabuco/ Ministério da Cultura. Recife: UFRPE/ FUNDAJ/ MEC, 2013.

RUSVELL, L. “A chuva é boa, os rios são a solução”. Disponível em: http://ocorrediario.com/a-chuva-e-boa-os-rios-sao-a-solucao/

SILVA, M. C. Batuque na Rua dos Negros: cultura e polícia na Teresina da segunda metade do século XIX. Dissertação. (Programa de Pós-Graduação em História Social). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2008.

SOUZA, N. J. S. Por dentro do teatro do boi: etnografia dos públicos da cultura no complexo cultural Teatro do Boi em Teresina (PI). Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2017.

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