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Teresina tecida pelos sem-teto: 169 anos e 35 mil famílias sem direito à moradia

Teresina, agosto de 2021. O gosto na boca não é dos melhores desses últimos 169 anos, o cheiro que sai dos rios também não. No ar, a fumaça parece brigar com o vento e os pássaros buscam espaço entre os fios para alimentar seus filhotes. No meio dessa selva de concreto armado, homens e mulheres afirmam que têm direitos, mas não têm voz. Os contrastes evidentes emolduram uma cidade às avessas, onde a moradia sempre foi um privilégio de poucos e a luta de muitos. 

Hoje (16/08), dia em que se comemora mais um aniversário de Teresina, o OCorre Diário publica esta reportagem especial que fala da cidade, a partir da ótica de quem não tem direito a ela. Morar, morar com dignidade e qualidade é uma realidade ainda distante dos mais de 130 mil teresinenses que não possuem moradia ou vivem em aglomerados subnormais, como vilas, favelas e ocupações. Os dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) são de 2010 e apontavam, na época, 35 mil pessoas sem nenhuma moradia, 111 aglomerados subnormais existentes na zona urbana de Teresina, correspondendo a 34.796 domicílios, onde vivem 130.115 pessoas, o que representa 16,95% da população total.

Entretanto, de acordo com o historiador Edmundo Ximenes,  no diagnóstico preliminar das áreas de assentamentos e de ocupações irregulares no município elaborado pela prefeitura, os números apontam para uma realidade mais complexa, resultado da trajetória urbana da cidade. São 76.901 famílias na área urbana vivendo irregularmente. Considerando dados do IBGE (2010), a média de moradores por domicílio de Teresina é de 3,7; estima-se que 284.533 habitantes, 37,06% da sua população, viva na condição de ilegalidade urbana. 

“Diante do quadro de desemprego, inflação e inexistência de uma política municipal, estadual e federal de habitação que considere o direito das famílias residirem com dignidade, a tendência é de intensificação dos conflitos urbanos. Acho que tais conflitos serão no campo da mobilidade e do reconhecimento das ocupações que estão se intensificando”, afirma. 

O direito de moradia é um direito constitucional e estabelece basicamente o direito de um lar. Ainda na década de 1940, o direito à moradia passou a integrar o rol dos direitos fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos,  que deu o estopim para o começo da Organização das Nações Unidas. No Brasil, a constituição de 1988 tornou a moradia um direito constitucional, embora ainda carente de regulamentação.

Mas na prática, é um direito que não chega a boa parte da população. Quem anda pela cidade pode comprovar o aumento no número de ocupações urbanas e rurais, da organização popular por moradia e da completa ausência de políticas públicas nesse segmento. Quem sabe bem disso é Marlene Vitório, moradora da Ocupação Dandara dos Cocais e integrante do Coletivo Quilombo Marxista. Ela iniciou nossa entrevista afirmando que a periferia de Teresina não tem o que comemorar nesses 169 anos da capital. 

Foto: CSP Conlutas

“Essa cidade não é pensada e construída para nós, só permanecemos nela porque lutamos e resistimos. Teresina é uma cidade pensada para os ricos e empresários. Nós que moramos nos bairros mais distantes dessa cidade, principalmente nas ocupações e favelas, somos privados de todos os serviços que uma cidade pode oferecer a seus habitantes. Aqui nos falta educação, emprego, lazer, saúde, saneamento básico, transporte público, moradias adequadas e nos sobram violência, desalento e preconceito. O único momento que o estado está presente nas nossas vidas é quando a polícia aparece para meter medo na nossa juventude, que está completamente abandonada pelo poder público”, afirma. 

O caso da Ocupação Dandara dos Cocais, localizada na Zona Norte de Teresina, é um reflexo da política habitacional de Teresina, ou melhor, da ausência de uma política. Foi a organização e a pressão popular que garantiu casa às mais de 1000 famílias que hoje moram na comunidade. A ocupação iniciou em 2016, um período de muita luta e resistência do povo pobre da região da Santa Maria da Codipi. Muitas famílias em situação de completa vulnerabilidade, em sua maioria mulheres negras chefes de família, que lutaram bravamente pelo seu lugar de morar. 

“Somos nós, os trabalhadores pobres, os negros e negras da periferia que historicamente produzimos a riqueza e construímos essa cidade. Desde a origem nosso povo, negros e indígenas, foram escravizados e obrigados a trabalhar até morrer para os donos das terras. Os que resistiam eram assassinados. Essa cidade, assim como nosso país, se construiu a partir da escravização, genocídio e expulsão de negros e indígenas”, relata Marlene. 

Os números que não refletem a realidade: déficit quantitativo x déficit qualitativo

Ocupação Lindalva Soares – Zona Norte

O movimento de moradia cunhou o conceito do déficit quantitativo e déficit qualitativo, o primeiro relacionado unicamente aos números de pessoas sem moradia e o segundo relacionado à qualidade das casas onde as pessoas moravam.  A Professora Lucineide Barros, militante histórica pelo direito à moradia em Teresina e ex-presidente da Federação das Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí – FAMCC na década de 1990, explica a diferença. 

“O déficit quantitativo diz muito da inoperância dos poderes públicos, mas o qualitativo diz muito mais; porque ele diz que o poder público já investiu recursos naquelas áreas e que mesmo assim deixou as famílias desassistidas. O déficit quantitativo fala mais de uma ausência do poder público; é como se as pessoas pudessem existir e não serem vistas pelo poder público, mas a verdade é o contrário, é poder público que não existe na vida das pessoas”, afirma. 

Hoje, esse cenário se estabelece em um contexto de ausência de censos e dados atualizados, que dificultam um diagnóstico preciso e empurram o problema para um lugar de esquecimento e negligência.

“Em relação a aparentemente esse déficit está estacionado é uma aparência porque nós não temos censo. O censo do IBGE é importante, mas ainda não consegue dar conta. Então isso é funcional aos poderes públicos; a falta de um censo que dê conta de fato de saber quem são as famílias que estão sem teto, quem são as famílias que tem teto mas não tem moradia porque não tem as condições adequadas e onde exatamente estão essas pessoas. Isso é funcional para o poder público dizer que não precisa se fazer tanto, como é funcional pra acontecer o que está acontecendo agora, como acontece sempre antes do período eleitoral, que são as ocupações. Por que todas as vezes que se aproximam as eleições as famílias pobres na sua sabedoria e na sua necessidade faz uso desse momento pra chamar atenção dos que estão pleiteando cargos públicos. É uma forma das famílias dizerem que estamos aqui”, complementa.   

Lucineide lembra que de uma experiência importante em Teresina na década de 1990: o Censo das Vilas e Favelas. Esse censo, realizado pelo movimento popular, localizava uma a uma as famílias e essas famílias tinham um cadastro de sem-teto e na hora que surgia uma ocupação, que pressionávamos o governo a regularizar, o governo ia lá e cadastrava o sem-teto da ocupação e assim conseguíamos cruzar as informações. “Dessa forma seria possível atacar o déficit, mas as Prefeituras não querem fazer isso, pois preferem dizer que o déficit tá estacionado e quem ocupa ocupa porque quer”, finaliza.  

Teresina tecida pelos sem-teto

As lutas urbanas e pela moradia em Teresina tiveram maior impacto nas décadas de 1980 e 1990 e colaboraram para várias conquistas nas leis e na efetivação delas. A carta de 1988 garante a função social da terra, ou seja, o direito à moradia está aí garantido como prioridade. O social em detrimento da especulação individual da terra. Mas foi apenas em 2001 que o Estatuto da Cidade regulamentou este princípio, colocando no seu bojo uma série de instrumentos legais, políticos e administrativos que possam efetivar de fato o direito à moradia digna consubstanciada como direito à cidade. 

Ou seja, o direito à moradia é direito à mobilidade, saneamento, lazer, saúde, ambiente, emprego, etc. A moradia conquista um status mais amplo, para além da dimensão urbanística que é a casa em si. As ocupações urbanas organizadas pelos sem-teto e apoiados pelas entidades comunitárias foram decisivas nas décadas de 1980 e 1990 no reconhecimento do direito à moradia e teceram a cidade de Teresina. 

Bairro Alto da Ressurreição – Foto: Wellynne Barbosa

Na década de 1990, Teresina foi palco de duas grandes ocupações emblemáticas. A Vila Irmã Dulce e o Alto da Ressurreição. Os movimentos de luta pela moradia conquistaram ampla visibilidade e repercutiam suas demandas. Na década de 1980 lideranças como Francisca Trindade e Anselmo Dias. Na década de 1990 tínhamos Lucineide Barros e Dino como referências. Eram grandes manifestações organizadas nas portas da Prefeitura e do Palácio de Karnak. 

Nas áreas consideradas nobres os edifícios eram erguidos. No entorno dos conjuntos habitacionais construídos no regime militar as famílias foram ocupando áreas e consolidando suas habitações. Mas não sem lutas. “Só as ocupações que tinham suporte político e jurídico de entidades fortes conseguiam manter-se no local, pois repercutiam suas lutas”, afirma. 

Imagens: Grax Medina

“A política habitacional ficou mal elaborada”, afirma promotora ao explicar porque os programas habitacionais construíram casas, mas não habitações

Promotora Myrian Lago – Foto: Ministério Público

O Ministério Público do Piauí, como fiscal da lei, é responsável por salvaguardar o direito da população nos mais diversos âmbitos. No que diz respeito à questão da Moradia, a Promotora Myrian Lago, que está a frente da 49º Promotoria de Cidadania e Direitos Humanos, ressalta que os casos que competem ao órgãos são unicamente aqueles que dizem respeito à coletividade e que, por lei, o Ministério Público não pode intervir em casos particulares. 

Nos anos de 2013 e 2016, por exemplo, a atuação da 49º promotoria foi concentrada na fiscalização do programa Minha Casa Minha Vida, no que tange a questão da moradia. “Embora seja esse um programa federal, os estados e municípios eram responsáveis por organizar e articular esse programa e nós, como fiscais da lei, estávamos lá fiscalizando os processos de seleção e distribuição das casas. Esse processo não era transparente e foi a partir da nossa atuação, em 2014, isso foi se arrumando e se tornou mais transparente”, afirma. 

Apesar da importância e relevância do PMCMV para redução do déficit habitacional nas cidades, alguns problemas ainda fazem da realidade dos moradores um tormento. Quem acompanha bem essa política em Teresina sabe que a maior parte dos investimentos mais recentes foram realizados na zona sul da cidade, na região do Torquato Neto. Isso porque a especulação imobiliária já avançou para outras regiões, tornando muito caro construir e empurrando a população empobrecida cada mais pra distante das áreas centrais, 

“Isso é um grande prejuízo para quem vai morar nessas casas, porque cada vez é mais distante do centro, mas distante dos serviços. Construir casas nessas regiões exige que estruturas de serviço sejam construídas, ou seja, essa política habitacional está intrinsecamente relacionada às demais políticas. Então você constrói um empreendimento imobiliário muito distante do centro, mas cadê a escola? Cadê o posto de saúde? Os equipamentos sociais que a população precisa eles vão demorar para chegar, então a política habitacional ficou mal elaborada. Jogou as pessoas cada vez mais distante do centro Agora nem isso, porque parou tudo”, afirma. 

Habitação de verdade, um lugar onde se possa morar com dignidade e tranquilidade exige muito mais que uma casa. Um cenário tem piorado com o tempo. De acordo com a promotora, a partir de 2018, o PMCMV tornou-se letra morta e desde então não houve mais nenhuma política habitacional aplicada no país. “Hoje, não temos, em âmbito municipal, estadual ou federal, nenhuma política de habitação no Brasil”, afirma a promotora Myrian Lago. 

Entrevista com Promotora Myrian Lago, disponível no Canal do Ocorre Diário no You Tube

Ministério Público aposta no diálogo para garantia do direito à moradia

Esse é um cenário de crise, que foi acentuado ainda mais por conta da pandemia da Covid-19 e que para construir saídas nesse contexto é preciso mais que os instrumentos legais, é preciso também criar pontes e estabelecer diálogos capazes de oferecer soluções. 

“Seria muito simples a gente entrar com uma Ação Civil Pública contra o município de Teresina [obrigando os gestores a assegurar o direito à moradia da população sem teto], sendo isso algo que ele não vai fazer, que ele não conseguiria fazer. Então eu acho que é preciso diálogo. É preciso envolver gestores, Ministério Público, Defensoria, mas sobretudo a população que é destinatária dessa política tão importante. Eu acredito muito nesse tipo de conciliação. É óbvio que normalmente a gente não consegue tudo que quer, você perde alguma coisa para ganhar outra, mas é possível que se construa algumas soluções”, afirma a promotora. 

A promotora cita o caso da Ocupação Dandara dos Cocais, onde houve um amplo processo de mobilização da comunicação, com a intermediação do MP-PI. “Eu digo que foi um caso massa, que nós tínhamos a promotoria de cidadania, promotoria de Meio Ambiente e duas promotorias da probidade administrativa. Nós discutimos durante oito meses e conseguimos que a Prefeitura assinasse um Termo de Arco Circunstancial – TAC, que garantiu que as pessoas pudessem ficar no terreno. Hoje, muitos já receberam inclusive título de propriedade pela casa. Então conseguimos uma solução consensual, porque se a gente jogasse isso na justiça, era mesmo que nada, porque a justiça não daria a resposta, talvez não dessa forma”, afirma. 

Ocupação Dandara dos Cocais – Foto: CSP Conlutas

Dandara dos Cocais: enquanto morar for um privilégio, ocupar será um direito

Marlene Vitório, moradora da Ocupação Dandara dos Cocais e integrante do Coletivo Quilombo Marxista, é uma daquelas lideranças que não foge da luta. A força da mobilização levou a periferia para a porta da Prefeitura de Teresina inúmeras vezes.O grito, muitas vezes silenciado, foi ouvido na marra. A vitória, aos poucos, foi sendo conquistada com o suor e luta de quem precisava de um teto pra morar. 

Mas Marlene sabe bem que essa política é, na verdade, um projeto que tem cor, gênero e classe social. Teresina tem a fama de ser uma cidade planejada, mas quem vive nas periferias sabe que isso não é verdade. Para Marlene, Teresina é uma cidade que se construiu através da luta do povo que não tem onde morar, pelo direito à moradia. Santa Maria, Vila Mocambinho, Dandara dos Cocais, Parque Brasil, Santo Antônio, enfim, da zona leste à zona sul, são as ocupações de terra que marcam a construção dessa cidade. A luta dos negros e indígenas pelo direto ao território permanece até hoje. 

A Ocupação Dandara dos Cocais foi iniciada em 2016. Segundo Marlene, a prefeitura municipal de Teresina ao tomar ciência do processo de ocupação utilizou todo o aparato repressor do Estado, como a PM e os fiscais das SDUs, para oprimir e violentar mulheres e homens que estavam em busca de um teto para morar. “Foi preciso muita garra e luta para permanecer onde estamos agora. Nada do que temos foi dado de mão beijada, tudo que conseguimos foi com muita luta. Tivemos que acionar MP, Defensoria pública, mas também fizemos a nossa movimentação política com atos de rua, acampamentos nas SDUs e prefeitura”, relembra. 

Apesar de hoje haver um acordo garantindo a posse da terra aos moradores, pouca coisa mudou por lá. A comunidade ainda sofre com salta de saneamento básico, energia elétrica,  e poucas escolas. A juventude não tem nenhum acesso ao lazer, a população está desempregada e passando fome, sofremos todo tipo de violência do Estado. 

“A pandemia escancarou ainda mais essa dura realidade, mostrou a face mais feia do capitalismo. Os mortos pela Covid têm cor de pele, endereço e classe social, isto é, somos nós da periferia os que mais estão morrendo, são os trabalhadores negros. Estamos tendo que escolher entre morrer de COVID ou morrer de fome. A prefeitura, assim como os outros governos, não tem feito nada para resolver essa situação dos trabalhadores”, finaliza Marlene. 

Prefeitura de Teresina, reafirma: não aceitará ocupações irregulares na cidade

A prefeitura de Teresina, por meio do secretário Edmilson Ferreira,  secretário da Semduh, engenheiro Edmilson Ferreira, reafirmou seu posicionamento frente à crise da moradia em  Teresina. Segundo o secretário, a orientação é não aceitar ocupações irregulares na cidade. “Essas ações são consideradas intoleráveis por violar o direito de propriedade. A lei haverá prevalecer, sempre que for preciso, mesmo assim o prefeito Doutor Pessoa estará aberto ao diálogo com todos, especialmente com aqueles que mais necessitam”, afirma. 

Secretário Edmilson Ferreira

O secretário disse ainda que, logo no início da gestão, a Prefeitura escreveu o município de Teresina no programa Casa Verde e Amarela, do Governo Federal e que está aguardando a divulgação das regras do programa para iniciar o cadastramento das famílias. “Por se tratar de um programa que exige um montante elevado de recursos, a prefeitura não tem como arcar sozinha. Temos construído sim, moradias incluídas nas demandas do Orçamento Popular, ou seja, são pontuais e insuficientes para atender Déficit Habitacional de Teresina”, afirma. 

Além do alinhamento do Governo Federal, a prefeitura afirma que vem mantendo também um diálogo com o Governo do Estado, em busca de soluções para o problema. “O prefeito Dr. Pessoa na última reunião que manteve com os manifestantes que buscam por moradia, afirmou que, se os governos Federal e Estadual não oferecerem programas habitacionais, a prefeitura montará o plano B para atender a população que mais necessita. Nesse momento estamos estudando formas de captação de recursos necessários para isso e ao mesmo tempo estamos dando continuidade ao plano de regularização fundiária”, finaliza o secretário Edmilson Ferreira. 

Das casas de palha ao concreto armado: a história da habitação em Teresina 

Edmilson Ximenes – Arquivo Pessoal

O historiador e professor da Universidade Estadual do Piauí – UESPI, Edmundo Ximendes é um profundo conhecedor dos movimentos históricos de ocupação e urbanização de Teresina. É quem nos conta um pouco dessa história e dos reflexos que ainda hoje são perceptíveis nesses processos históricos. Segundo ele, após apenas seis anos de sua transformação em Capital, a população de Teresina se constituía de 8 mil habitantes e 863 residências, das quais 530 já eram cobertas de palha, exibindo, assim, segundo estudiosos  um contraste social marcado pela notória presença de pobres que intranquiliza as elites locais. 

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“Nossa origem, portanto, está marcada pela notória presença da segregação socioespacial, onde a maioria da população já nos primeiros anos da cidade não tinham condições de moradia. A casa coberta de palha não é apenas questão cultural, é também reveladora da desigualdade socioespacial onde poucos tinham residências de alvenaria e telhas, mais seguras em tempos quentes devido aos constantes incêndios”, afirma o historiador. 

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Segundo ele, a proibição, em 1856, no código de postura municipal, da construção de casas de palha na zona urbana (devido os “riscos de incêndios” e inalterada até 1939 pelo  poder público),  aponta o real interesse das elites em  transformar o pobre num sujeito irregular, obrigando-o a se  deslocar para as margens da cidade, lugar que era permitido ter a casa de palha. “O livro do professor Alcides Nascimento Cidade Sob Fogo revela que nas décadas de 1930 e 1940, incêndios nas casas das famílias pobres e a poucas ações do poder público em melhorias habitacionais evidencia o descaso com a população pobre e reforçando seu afastamento social e espacial do centro”, complementa o professor Edmundo. 

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A partir da década de 1950 ocorre um processo de migração mais intenso, onde famílias do interior do Piauí e Maranhão se deslocam para viver em Teresina. Estas famílias foram expulsas do campo pela falta de terra, trabalho e estrutura de serviços como educação e saúde e atraídas pela possibilidade de melhoria de vida na capital. O crescimento da população residente não foi acompanhado por políticas concretas que pudessem atender a demanda. 

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“O resultado disto é uma distorção entre o número de famílias e de casas dignas para obrigá-las. Os conjuntos habitacionais construídos principalmente nas décadas de 1970 e meados de 1980 pelo regime militar não foram suficientes para resolver a questão da moradia. Ao contrário,  muitos conjuntos habitacionais como o Dirceu I e II só conquistaram uma estrutura mais adequada nas décadas seguintes. O retorno das eleições municipais na década de 1980 colaborou para as demandas dos movimentos sociais fossem, mesmo com muitas lutas, parcialmente reconhecidas. Daí muitos conjuntos passam a ter água, energia, bancos, hospitais”, explica.

Alameda Parnaíba no trecho do Morro da Esperança.
(1976 / O Dia / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Entretanto, na década de 1990 o governo federal se exime de investir em moradia abandonando e deixando os entes municipais com esta responsabilidade. Neste contexto, Teresina vivencia a experiência do Vila Bairro. A concepção ou conceito do Vila Bairro em tese respondia a demandas históricas dos movimentos sociais que exigiam políticas que urbanizassem os assentamentos de baixa renda e integrassem a parte da cidade com escolas, vias urbanizadas, praças, melhoria habitacional, hospitais, geração de emprego e renda. 

“Uma curiosidade: o Vila bairro só foi possível ser elaborado devido aos Censos de Vilas e Favelas que a prefeitura elaborava com a participação das entidades federativas. Aliás, o primeiro levantamento de Vilas e Favelas na cidade foi realizado pela FAMEPI na segunda metade da década de 1980 que continha uma série de demandas enviadas à Secretaria de Assistência Social à época responsável pela política habitacional na cidade”, afirma. 

Desta iniciativa sai dados dos assentamentos no Perfil de Teresina e mais adiante o primeiro Censo de Vilas e Favelas que foi fundamental na elaboração do Programa Vila Bairro. “Ademais, o Vila Bairro também teve seu efeito segregador, pois os maiores investimentos foram nos assentamentos urbanos organizados pelo município e que eram resultados de remoções de famílias em áreas mais centrais. Outros componentes, como geração de emprego e renda, não foram impactantes”, explica. 

Dados presentes na minha tese de Doutorado apontam este descompasso entre o ritmo de crescimento e a oferta de moradia.  Em 2010, Teresina tinha uma necessidade de 32.243 unidades (29.644 na zona urbana e 2.599 na zona rural); verifica-se uma queda em relação ao déficit de 2000, que era de 47.311, representando uma queda de 37,35% no intervalo intercensitário. Apesar desta queda do déficit, considerando o ritmo da resposta, estima-se a erradicação do déficit em quase 30 anos. Como as ocupações urbanas se intensificam nestes últimos anos evidencia-se portanto que a questão da moradia continua sendo um dos principais problemas da cidade.  

Como nas décadas de 1990 e 2000, há uma queda no ritmo de crescimento demográfico de Teresina, pode-se concluir que a expansão urbana de áreas então consideradas limítrofes e rurais, nesse período, é tanto resultante do processo de migração interurbana quanto pela ação dos dos governos (municipal, estadual e federal), proprietários fundiários, construtores, promotores imobiliários e movimentos sociais de luta por moradia.  

O movimento popular de moradia: lutar vale a pena!

Se existe algo para se orgulhar nesse aniversário de Teresina são as conquistas do movimento popular pela garantia do Direito à Moradia. A professora Lucineide Barros começou sua atuação na luta pela moradia a partir do seu bairro, o Buenos Aires, na zona norte de Teresina, e depois foi presidente da Federação das Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí – FAMCC, quando fez parte do grande movimento que origem à Vila Paz.

Lucineide fala sobre a realidade de um dos momentos de maior efervescência da luta pela moradia em Teresina, a década de 1990 e início dos anos 2000. Ela destaca duas grandes fases da organização popular nesse período: a primeira onde o cenário era de intenso fluxo migratório do interior para a capital, com inúmeras ocupações espontâneas ocorrendo por toda a periferia da cidade. A partir do fim dos anos 90, segunda fase, o momento foi de planejamento das ocupações, com uma rede nacional articulada e intensa mobilização pela reforma urbana. 

Em comparação com a realidade de hoje, Lucineide percebe a importância de um movimento articulado em rede tanto em nível local como em um contexto nacional. 

“Tínhamos uma rede nacional que atuava em uma situação de mobilização que vinha muito com a força da luta pela Reforma Urbana para garantir os dois artigos da Constituição Federal sobre a questão da moradia. Aquela mobilização de 1988 ainda estava muito forte e aquela mobilização deu para render bastante; ela construiu o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, a Central de Movimentos Populares, a União Nacional de Moradia Popular e essas organizações nacionais repercutiram bastante aqui no Nordeste”, lembra Lucineide Barros. 

O Nordeste é uma região onde o déficit habitacional é um dos maiores do país. Para Lucineide, esse fato também impulsionou as lutas, que para ela ganharam notoriedade a partir da organização popular.

“Então eu vejo essas duas coisas diferentes hoje, não é que falta movimento, é que nos falta esses movimentos gerais de articulação das lutas locais, como uma central de movimentos populares, por exemplo. Essas organizações todas ainda existem, mas elas não existem com vigor de mobilização nacional existiam naquele momento. Aqui a FAMCC estava no contexto da organização fortalecimento dessas organizações nacionais, a gente por exemplo não planejava uma ocupação sem ter aqui a presença do movimento Nacional de luta por moradia que é uma forma de fortalecer o movimento nacional. Então eu acho que um pé aqui e um pé no movimento nacional foi um diferencial que eu acho que no momento nós não temos.” 

“O Estado sempre andou atrás”

“Eu acho que o estado sempre andou atrás. Eram os setores populares que dizem da Necessidade e aí na medida em que falam dessa necessidade e vão dando demonstrações concretas da existência delas o Estado vai se mobilizando, ou seja, na verdade a mobilização é da sociedade e alcança o estado. Por exemplo, nós tivemos um período dos conjuntos habitacionais na década de 1960; naquele momento já foi uma ação por conta do Déficit Habitacional, mas naquele momento era muito para dar uma outra cara para cidade de Teresina. Era para uma questão que tinha a ver com déficit, mas tem a ver também com a estética da cidade”, conta Lucineide Barros. 

Entrevista com professora Lucineide Barros

Ainda de acordo com ela, quando chega nos anos 80 essa política (dos conjuntos habitacionais) já está em crise. A Caixa Econômica que era o agente financiador já começava a sentir a crise econômica, os moradores também já estavam endividados, aí começa a ter movimento de mutuário para não pagar as prestações, começa a ter despejos nos conjuntos habitacionais.

“O que a história vai mostrando é que primeiro vem a necessidade gritante e o estado a partir de isso vai tentando dar pequenas respostas que não são para resolver o problema, mas para amenizar o problema, porque o estado poderia muito bem se antecipar.”

20 anos de Estatuto da Cidade: “Temos a Lei mas não temos a decisão política”

Para Lucineide é importante ter na lei esses instrumentos, mas que junto com isso é necessários que a população esteja muito mais apropriada desses instrumentos e que além disso se tenha uma política de Estado que dê vazão ao que os instrumentos do Estatuto da Cidade dizem que é necessário fazer. Ou seja, na prática, do que adianta ter Estatuto da Cidade se a temos a Lei do teto de gastos; do que adianta ter o Estatuto da Cidade se temos a Lei de responsabilidade fiscal; do que adianta ter Estatuto da Cidade se não temos mais condição de usar fundos como o FGTS para construir moradia popular?

“O movimento teve que aprender sobre o direito; isso que já estava na teoria e que chegou para o conhecimento dos setores populares como direito. Disseram para nós que a gente tem direito à escola, a gente tem direito ao posto de saúde, tem direito à casa. Na medida em que disseram que a gente tem direito, a gente foi fazendo a lei. A lei não surgiu da cabeça do legislador, ela surgiu da afirmação do direito na prática. Disseram que a gente tem moradia, mas cadê a casa?  Então nós fomos atrás da casa; e quando a gente lutou pela casa ia dizendo ao mesmo tempo ‘nós estamos aqui porque nós temos direito. Tá escrito.”

Vila Irmã Dulce: “fomos atrás de gente e de construir coragem nas pessoas”

Vila Irmã Dulce – Fotos arquivo pessoal Lucineide Barros

Há 22 anos, na zona sul de Teresina (PI), um sonho de muitas(os) começou a virar realidade; hoje esse sonho se chama Vila Irmã Dulce. Lucineide esteve à frente dessa que foi um das maiores ocupações de Teresina. Ela destacou elementos importantes para a vitória da ocupação naquela época: número de pessoas, ou seja, é preciso que as pessoas necessitadas se juntem e a segunda coisa é essa organização. 

“Então no caso da Irmã Dulce, o que a gente fez foi mobilizar gente que estava sem teto na cidade; conseguimos chegar ao número de 3 mil famílias e diante de 3 mil famílias é muito difícil ter um governo que sustenta alguma posição. Naquele momento a prefeitura (na gestão Firmino Filho) veio a público dizer que acabaram as ocupações em Teresina, afirmando que qualquer ocupação que houvesse a negociação seria entre ocupantes e proprietários e a Prefeitura não iria mais se meter nisso. Mas aí a gente negou isso que a prefeitura disse, afirmando que a falta de moradia é um problema do poder público e o poder público vai ter que continuar atuando diante desse problema”, afirma.  

Ela conta que o movimento de moradia foi atrás das pessoas que estavam alijadas do direito à moradia e que pudessem ser encorajadas. 

“Fomos atrás de gente e de construir coragem nas pessoas. Isso implicou a organização; construímos núcleos de base; discutíamos a problemática urbana, a questão da falta de moradia, o porquê dos terrenos serem caros; por que quando se ocupa uma terra logo alguém consegue uma liminar de reintegração de posse; quem são os adversários do Direito à Moradia; como enfrentar esses adversários com estratégias. Então isso ia dando ânimo e coragem nas pessoas porque elas começavam a ver que o direito estava do nosso lado.”

Reportagem especial: Luan Matheus Santana e Luan Rusvell

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