Cerca de trinta indígenas dos povos Akroá-Gamella, Guegue do Sangue, Kariri e Tabajara-Ipy estiveram em Brasília, na última semana de março (24 a 28/3), para cobrar a demarcação de seus territórios e o acesso a políticas públicas, além de denunciar o avanço do agronegócio sobre suas áreas. Os indígenas também solicitam a revogação da Lei 14.701/2023, conhecida como “lei do marco temporal”, e denunciam a Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema no Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo os relatos das lideranças, essa é primeira vez que uma delegação de povos indígenas do Piauí vem à capital federal reivindicar seus direitos. Conteúdo, há uma grande expectativa em relação às reivindicações, conta o cacique do povo Guegue do Sangue, Aurélio Pereira. “A gente espera que as demandas sejam resolvidas, que os órgãos venham a atender-nos. Porque a nossa situação hoje é bem complicada, bem complicada mesmo”.
“Os indígenas solicitam a revogação da Lei 14.701, conhecida como “lei do marco temporal”, e denunciam a Câmara de Conciliação”
Pela demarcação de seus territórios e acesso às políticas públicas, indígenas do Piauí realizam incidência em Brasília. Foto: Adi Spezia | Cimi
As preocupações do cacique e das demais lideranças estão relacionadas com o avanço do agronegócio e do hidronegócio, impulsionados pela expansão das fronteiras agrícolas na região do Matopiba (contempla os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), que tem um grande potencial para produção de comodities, como soja, milho e algodão, destinados à exportação em sua grande maioria.
O que o agronegócio chama de desenvolvimento, aos indígenas é sinônimo de destruição, invasões e conflitos. “Ao redor do nosso território o agronegócio já desmatou tudo”, conta o pajé do povo Tabajara-Ipy, Vitorino Leite.
“Ao redor do nosso território o agronegócio já desmatou tudo”
Ao mesmo tempo em que denuncia o avanço do agronegócio sobre as terras de seu povo, a contaminação das águas, a morte dos animais causadas pela pulverização aérea de agrotóxicos, o desmatamento e a mineração, o líder espiritual denuncia a destruição do “espaço de encantaria do meu povo, essa ancestralidade que nós temos dentro dessa mata e do território indígena, então acabando com os Tabajara-Ipy, com todo o povo do Piauí com a questão do desmatamento, do agronegócio. Nosso território tem uma mineradora que está acabando com a saúde”.
Por essas razões, os povos indígenas do Piauí, em Brasília nesta semana, cobram urgência no fortalecimento do combate ao desmatamento ilegal, queimadas, mineração, contaminação do solo, do ar e, principalmente, das pessoas. Pedem a proteção da mata de vegetação nativa e áreas ecológicas nas comunidades, assim como pedem amparo policial para os povos indígenas nas áreas ameaçadas pelo desmatamento.
“Nosso território tem uma mineradora que está acabando com a saúde”
A delegação se reuniu com a presidente da Funai e sua equipe técnica para tratar sobre as demarcações dos territórios no Piauí. Foto: Adi Spezia | Cimi
“A gente faz as retomadas onde nossa terra foi e está sendo grilada por grandes empresas. Nós estamos sufocados pelos grileiros que dizem que eles são os donos, mas os donos somos nós, até porque tem nossos cemitérios,” conta a cacique e presidente da Associação do Povo Indígena Akroá Gamella de Uruçuí-Pi e Adjacências (Apiagu), Maria da Conceição Akroá-Gamella.
Em favor dos Akroá-Gamella há uma Ação Civil Pública (ACP) nº. 1005927-41.2024.4.01.4003, que busca a garantia da demarcação de territórios do povo no Piauí. Os indígenas cobram o cumprimento desta ACP, a desapropriação dos invasores que ocupam ilegalmente as terras pertencentes ao povo e a proteção às áreas de retomadas. Listam como urgentes medidas que buscam fortalecer o combate ao desmatamento ilegal, à poluição dos recursos hídricos, às queimadas, à contaminação do solo, da água, do ar e, principalmente, das pessoas, reforça um dos documentos entregues pela delegação.
“A gente faz as retomadas onde nossa terra foi e está sendo grilada por grandes empresas”
Pela demarcação de seus territórios e acesso às políticas públicas, indígenas do Piauí realizam incidência em Brasília. Foto: Adi Spezia | Cimi
“A pessoa que está na terra tem tudo na vida. A nossa está invadida, é preciso tirar os grileiros porque a gente está convivendo toda hora com eles, a gente não aguenta mais, a gente quer nossa terra de volta”, reivindica o cacique do povo Guegue do Sangue.
Sob a justificativa do desenvolvimento, os empreendimentos agrícolas têm expulsado as comunidades e povos tradicionais de seus territórios no estado. “Estão tomando conta de tudo, invadindo, desmatando, caçando dentro da nossa aldeia. É como se não existíssemos”, lamenta o cacique Aurélio.
“A pessoa que está na terra tem tudo na vida. A nossa está invadida, é preciso tirar os grileiros”
Ter sua identidade indígena reconhecida é o primeiro passo para que possam acessar seus direitos, assegura a liderança do povo Kariri, Maria Francisca, “porque o que nós mais precisamos é ser enxergados, a gente quer a demarcação das nossas áreas”. Por isso a “gente quer essas terras demarcadas, a gente quer nosso direito por ser indígena, porque a gente hoje sofre muito preconceito”, completa a liderança Kariri.
Além de terem sua identidade originária questionada, esse tem sido um dos principais argumentos adotados para a negação de todo e qualquer direito. “Pelo fato de nós não sermos reconhecidos como indígenas em nosso próprio estado, estamos sem nossas terras, saúde e educação”, denuncia Maria Kariri.
“Gente quer essas terras demarcadas, a gente quer nosso direito por ser indígena, porque a gente hoje sofre muito preconceito”
A delegação se reuniu com a presidente da Funai e sua equipe técnica para tratar sobre as demarcações dos territórios no Piauí. Foto: Adi Spezia | Cimi
Os indígenas do Piauí vão à Suprema Corte
Com áreas em estágios diferentes no processo administrativo de demarcação ou em retomadas, os povos Akroá-Gamella, Guegue do Sangue, Kariri e Tabajara-Ipy foram à Suprema Corte para pedir que declarem a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, bem como para expor preocupações em relação à Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema no STF.
Essa lei estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, além de tratar de outros assuntos que afrontam os direitos indígenas.
“A lei tem causando insegurança física e jurídica para os povos indígenas do Brasil e instaurado uma situação de conflito constitucional”
Os indígenas também solicitam a revogação da Lei 14.701 e denunciam a Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema no STF. Foto: Adi Spezia | Cimi
Em vigor, a lei tem causando insegurança física e jurídica para os povos indígenas do Brasil e instaurado uma situação de conflito constitucional: a ação do Congresso inseriu no ordenamento jurídico brasileiro uma lei em completa dissonância com a Constituição Federal e com o que estabeleceu o STF no Tema 1031, cabendo ao Supremo a apreciação da inconstitucionalidade da lei com urgência, contextualiza a advogada indigenista.
Além de acompanhar uma sessão no Plenário do STF, ao longo da semana a delegação realizou o protocolo de documentos junto aos gabinetes dos Ministros onde reúnem argumentos que atestam a dimensão e impacto da norma. “Embora sejamos diversos povos, encontramo-nos todos na mesma situação, sem que nossa terra seja demarcada e protegida. Nossos territórios de ocupação tradicional estão invadidos e sendo degradados diariamente por terceiros, não indígenas” listam no documento.
“Embora sejamos diversos povos, encontramo-nos todos na mesma situação, sem que nossa terra seja demarcada e protegida”
A delegação pede a suspensão imediata dos efeitos da Lei 14.701, pois os povos enfrentam ameaças, invasões e desmatamento em seus territórios. E reforçam aos Ministros: “não aceitaremos negociação de direitos indisponíveis e jamais aceitaremos o retorno do regime de tutela nos processos judiciais que nos dizem respeito”.
A Suprema Corte já declarou inconstitucional a tese do marco temporal no ano de 2023, no processo RE 1017365 (Tema 1031), de relatoria do Ministro Edson Fachin. No entanto, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023 em período de recesso parlamentar, que institui o marco temporal e torna o processo de demarcação ainda mais burocrático e mais demorado. Razão pelas quais a delegação também solicita à Corte a “conclusão definitiva do julgamento do RE 1017365 (Tema 1031), cujo objetivo é justamente a análise do estatuto constitucional dos povos indígenas”.
“Não aceitaremos negociação de direitos indisponíveis e jamais aceitaremos o retorno do regime de tutela nos processos judiciais que nos dizem respeito”
Os indígenas também solicitam a revogação da Lei 14.701 e denunciam a Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema no STF. Foto: Adi Spezia | Cimi
Acesso à saúde e educação
Os artigos 231 e 232 da Constituição Federal do Brasil reconhecem aos povos indígenas a posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam, sendo a União responsável por demarcar, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. No entanto, essa não tem sido a realidade dos povos que integram a delegação.
“O objetivo nosso é o território, a educação e a saúde, porque saúde e educação a gente não pode fazer ao mesmo tempo que a nossa volta, nosso território não esteja demarcado”, explica o pajé Vitorino Tabajara-Ipy.
“O objetivo nosso é o território, a educação e a saúde, porque saúde e educação a gente não pode fazer sem que o território demarcado”
Os indígenas também solicitam a revogação da Lei 14.701 e denunciam a Câmara de Conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes sobre o tema no STF. Foto: Adi Spezia | Cimi
Os indígenas cobram a implantação da estadualização da educação escolar indígena, a construção das escolas indígenas nas comunidades, assim como de espaços culturais e de lazer para preservação da cultura e da identidade tradicionais. Cobram também a criação da categoria de professores indígenas no estado do Piauí.
Quanto a saúde, os indígenas cobram a Criação do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Piauí, da Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) e do Polo Base de Saúde Indígena nas respectivas comunidades. Também reivindicam o estabelecimento da Coordenação Regional da Funai no Piauí e suas Coordenações Técnicas Locais (CTL).
“Onde que a gente está tem que buscar a água. Porque sem água, sem luz, não existe”
Os indígenas também reivindicam o acesso e expansão da assistência social para as áreas de retomada e comunidades, proteção, distribuição de cestas básicas, construção de moradias, construção de cisternas de primeira e segunda águas, perfuração de poços artesianos, saneamento básico, oferta de sementes para plantio, a expansão de rede de energia elétrica, construção de pontes e estradas para facilitar o acesso às comunidades.
“Onde que a gente está tem que buscar a água. Porque sem água, sem luz, não existe. Devemos montar cisternas para ter água para beber. Existe lá pessoas com deficiência, e lá não tem nada”, relata a cacique Maria da Conceição Akroá-Gamella.
As reivindicações foram entregues e protocoladas junto à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Defensoria Pública da União, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), aos ministérios da Educação, Meio a Ambiente e dos Povos Indígenas. Assim como à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e aos gabinetes dos ministros do STF.
“A delegação solicita à Corte a conclusão definitiva do julgamento do RE 1017365, cujo objetivo é analisar o estatuto constitucional dos povos indígenas”
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