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Trançando ancestralidade: a arte tecida por mulheres piauienses que está ganhando o mundo 

Reportagem: Luan Matheus Santana

“A carnaúba faz parte da vida da gente. É como se ela fosse nós”, diz Serrate Maria, artesã de Ilha Grande de Santa Isabel, no litoral do Piauí. Esta reportagem mergulha nas histórias de mulheres no norte do Estado, que encontram na palha de carnaúba um novo sentido para suas vidas, fortalecendo laços comunitários, gerando emprego, renda, liberdade e empoderamento feminino. 

Pelas mãos ágeis de quem envolve fios de palha como quem trança a própria vida, a artesã Serrate Maria, de 57 anos, aprendeu logo cedo que precisava ser forte, assim como as Carnaúbas do litoral piauiense. Casou aos 15 anos sem imaginar os desafios que precisaria enfrentar para sobreviver. Com pouco estudo  e sem trabalho, ela apostou no artesanato todas as suas fichas. “Não foi um desafio, foi uma prova de necessidade”, conta. “Casei achando que marido tinha que dar tudo. Perdição, né? A necessidade foi tão grande que minha vizinha fez um primeiro caminho (de trançado) e de manhã já estava com minha bandeja pronta. Fui ao mercado, vendi e o moço perguntou se eu fazia mais 10. Assim eu fiz, assim eu comecei.”

Com o dinheiro, lembra até hoje o que comprou: “um quilo de piranha, meio quilo de farinha branca, tempero e arroz. Voltei pra casa alegre”, afirmou. A história de Serrate é também a história de muitas Marias espalhadas Piauí afora. Mulheres que são como carnaúba, que resistem ao tempo com resiliência, que transformam necessidade em arte, palha em memória, ancestralidade e identidade. Mulheres que encontram no artesanato uma fonte de renda, mas principalmente, a esperança de um futuro. “Eu criei alma nova. Aí eu soube quanto era uma caixa de fósforo, de tudo. E ensinei tudo para minhas filhas, pra elas não passarem pelo que eu passei”, conta Serrrate, com os olhos cheios de lágrimas. 

Hoje, a artesã carrega nas mãos os 42 anos de ofício e os 25 anos à frente da Associação de Artesãs de Trançado da Ilha Grande de Santa Isabel. Serrate não se contentou em ficar à beira da mesa esperando clientes. Ela foi em busca de mercado, criou um grupo, formalizou a associação e fez do trançado uma ponte que conecta sua comunidade ao mundo. Hoje, a Associação oferece oficinas, recebe designers de outros países e participa de feiras em vários estados do Brasil, além dos produtos de exportação. “Hoje a gente manda nosso trabalho para a Alemanha, pra Finlândia, pra Bélgica”, conta Serrate. Assim, entrelaçadas, as mais de 25 famílias associadas não vendem apenas bolsas e objetos de decoração, elas compartilham histórias, cultura e resistência.

Entre os dias 21 e 25 de maio deste ano elas estiveram no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, participando do 19º Salão do Artesanato de São Paulo – Raízes Brasileiras, a convite do Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Um marco de reconhecimento e valorização para o artesanato feito com a palha da carnaúba no Piauí. Selecionada entre as melhores do país, a associação leva à capital paulista peças únicas, a força de um território, a identidade das comunidades tradicionais e um modelo de desenvolvimento sustentável enraizado na sabedoria popular. 

“Essa conquista, que nos enche de orgulho, também nasce da parceria com o Projeto Tartarugas do Delta, que atua na conservação ambiental e na valorização do saber local e da cultura que protege a natureza”, publicou o Instituto Tartarugas do Delta, em seu perfil nas redes sociais. “Fomos convidadas pelo Sebrae no espaço Top100, que fomos contemplados na 4ª edição. Foi um evento muito gratificante, tivemos bastante demanda, novos clientes. Contamos com muitos apoios, como a Sudarpi, o Instituto Tartarugas do Delta, o Projeto Carnaúba Viva e o pessoal da Agricultura Familiar”, explicou Francisca Maria Gonçalves, filha de Serrate e conhecida como Pitita.

No Piauí, o Sebrae mantém um projeto específico voltado para o artesanato, chamado “Tramas Piauienses: Tecendo Identidades”. Quem coordena esse projeto é a analista de mercado Socorro Portela e, segundo ela, atualmente cerca de 100 artesãs e artesãos de 14 municípios do estado estão inseridos nesse projeto, que busca oferecer apoio técnico, capacitação, consultoria, acesso a crédito e mercado para o segmento do artesanato.

“Sempre trabalhamos com ações direcionadas ao artesanato, mas ano passado criamos esse novo projeto, com o objetivo de retomar os grupos, associações e principalmente trabalho coletivo, além de descobrir novos grupos. Seguimos em duas linhas: capacitação da gestão e, em paralelo, acesso ao mercado. Ano passado proporcionamos a esses grupos a participação em 12 eventos, sendo 7 fora do estado e 1 deles fora do Brasil, que foi a participação na Expoartesanías, na Colômbia”, afirma Socorro. O evento, que aconteceu em dezembro de 2024, na capital colombiana, é considerado uma das maiores feiras internacionais de artesanato da América Latina. 

Socorre Portela, analista do Sebrae Piauí – Foto: Luan Matheus Santana | Ocorre Diário

Do trabalho análogo à escravidão ao empoderamento feminino

Apenas dois grupos do Piauí foram selecionados para a Expoartesanías 2024, na Colômbia, entre eles, o grupo Curicacas, formado atualmente por 75 mulheres da região de Campo Maior, em especial, da comunidade Resolvido. A comunidade fica em uma região de mata dos cocais, onde as carnaubeiras  desenham o horizonte e se enfileiram como guardiãs do tempo, testemunhas da vida que pulsa forte entre as mulheres que fazem do trançado um elo entre passado, presente e futuro. Aqui e alí, no Resolvido e na Ilha Grande, a natureza não é só paisagem — é matéria, é subsistência, é cultura. Cada folha colhida, cada tira de palha trançada carrega mais do que técnica: carrega memória. São histórias de mulheres que, com suas mãos, constroem muito mais que objetos. Constroem autonomia, transmitem saberes e reafirmam quem são.

Em novembro de 2022, 14 mulheres da comunidade do Resolvido, em Campo Maior, se reuniram para resgatar a tradição do artesanato feito com a palha da carnaúba para complementar a renda familiar. Foto: Arquivo Pessoal | @usecuricacas

 

O Curicacas nasceu de um processo de transformação social e econômica iniciado em 2016, quando vieram à tona diversos casos de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, em Campo Maior e Piripiri (PI). Diante da precariedade das condições de trabalho e da falta de alternativas de renda, o desafio era claro: organizar a comunidade para comercializar de forma justa e direta o pó da carnaúba e, ao mesmo tempo, valorizar o artesanato tradicional com a palha — um saber ancestral ameaçado. 

Em 2020, com o lançamento do “Plano de Promoção do Trabalho Decente na Cadeia Produtiva da Carnaúba”, executado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), e com o apoio do Sebrae-PI e da agência de fomento alemã GIZ, mulheres dessas comunidades foram capacitadas em técnicas de trançado e de gestão, resgatando e aprimorando seus saberes por meio de ciclos de formação. 

Como explica Fátima Maria, uma das fundadoras, o grupo surgiu como uma possibilidade real de mudança de vida. “O MPT viu a necessidade de trazer um projeto pra cá, para que aquele dinheiro das multas beneficiasse as comunidades afetadas. Então a gente se juntou, resgatou o artesanato com palha de carnaúba e começamos a produzir bolsas, peças de decoração e, principalmente, a resgatar nosso valor.” Hoje, são 75 artesãs distribuídas em 3 grupos, sendo 13 só na comunidade Resolvido. Mulheres que olham para a palha como uma extensão do próprio corpo. 

Maria de Fátima, integrante do Curicacas. Foto: Luan Matheus Santana / Ocorre Diário

Com menos de três anos de existência, o grupo já fez voos inimagináveis. A participação em uma das maiores feiras da América Latina, a Expoartesanías, foi um marco na vida das artesãs, que representaram não apenas o artesanato local, mas o país inteiro. “Foi uma emoção indescritível ver o nosso trabalho ocupando aquele espaço. A feira trouxe visibilidade, novos pedidos e o fortalecimento da nossa autoconfiança”, relata Maria de Fátima, uma das lideranças do grupo.

Essa conquista foi impulsionada pelo projeto Tramas Piauienses: Tecendo Identidade, desenvolvido pelo Sebrae, que oferece qualificação, apoio na estruturação da produção e inserção em mercados nacionais e internacionais. “O Sebrae tem caminhado junto conosco. Sem esse suporte, não teríamos alcançado tantas oportunidades. Hoje, conseguimos fortalecer a nossa marca e entender melhor como funciona o mundo do empreendedorismo”, afirma Fátima.

O reconhecimento enquanto artesãs tem elevado a autoestima e a percepção de protagonismo entre elas. “Antes, muitas de nós não se viam como produtoras de algo tão valioso. Hoje, nos sentimos empoderadas, valorizadas e capazes de sustentar nossas famílias com o que fazemos”, conta Maria de Fátima. Apesar dos desafios e da ausência de políticas públicas consistentes, elas seguem firmes, trançando com a palha de carnaúba também os fios de um futuro mais justo, criativo e autônomo para suas comunidades.

Mulheres que são como carnaúbas: a relação com território 

Assim como a carnaúba que resiste às secas e sustenta a vida ao redor, as mulheres da Ilha Grande e Resolvido permanecem de pé, mesmo diante das ausências, das dificuldades e do silêncio. “Está havendo muita queimada, mas por onde o fogo passa, a carnaúba resiste. Ela brota do fogo com sua resistência. A carnaúba é sobrevivência, é luta, é cultura. Aqui você vê uma bolsa, mas aqui também é um cofo. E o cofo serve pra que? Pra tirar o marisco, botar o peixe, botar o camarão, levar pro mercado. E ainda vira bolsa. Então cada trançado feito aqui carrega a utilidade, a história, a nossa resistência”, afirma Dona Celeste Souza, pescadora do Delta do Paraíba e uma das mais importantes lideranças da região.

Dona Celeste Souza, pescadora do Delta do Paraíba. Foto: Luan Matheus Santana / Ocorre Diário

O território, explica Dona Celeste, não é só o pedaço de chão onde se constrói uma casa. É também onde se tece a vida, onde se aprende com os mais velhos, onde se tira o sustento e se repassa o conhecimento. “É criar nossos filhos, é passar de geração em geração. E nós precisamos resgatar essa história, porque estamos perdendo muita coisa”, disse. Celeste, Serrate, Pitita, Fátima… mulheres que trançam o tempo com a mesma paciência que trançam a palha — fazendo da vida um ofício e do território, um lugar de permanência, luta e beleza.

Assim, a carnaúba assume um lugar central na vida delas e nas suas relações com o território. Dona Maria de Lourdes, artesã e integrante do Grupo Curicacas, sintetiza bem essa relação. “A natureza é sábia. Ela nos dá de graça tudo que a gente precisa. Tem o trabalho de extrair, de tratar, mas ninguém planta. A carnaúba é chamada de árvore da vida porque é toda aproveitada: da raiz ao fruto”, afirma Dona Lourdes, explicando que a raiz é utilizada para fabricação de remédios, o caule serve para construção, da palha se faz vassouras, cobertas de casas e o artesanato.

Por isso, ela também é chamada de “árvore da vida”, porque dela tudo se aproveita. Além do que já explicou Dona Lourdes, há também o pó extraído da palha, que dá origem à cera de carnaúba, usada em diversos setores da indústria, dentro e fora do Brasil.

Artesanato movimentou mais de R$ 700 mil em 2024 no Piauí

O Piauí abriga hoje 3.736 artesãos cadastrados na Carteira Nacional do Artesão, espalhados pelos 12 Territórios de Desenvolvimento do Estado. Esse número revela a força e a diversidade do fazer manual piauiense, que preserva saberes tradicionais e movimenta a economia local. Trabalhos como os das mulheres das comunidades Ilha Grande e Resolvido tem girado uma engrenagem econômica que se faz com respeito à identidade cultural de comunidades inteiras, do sertão ao litoral. Um setor que é prova viva de como é possível gerar renda, com responsabilidade socioambiental e respeito às tradições populares. Segundo dados da Superintendência de Desenvolvimento do Artesanato Piauiense (Sudarpi), só em 2024, a comercialização de produtos artesanais gerou R$ 723.464,73, um crescimento de 44% em relação ao ano anterior.

De acordo com Socorro Portela, analista do Sebrae, só com participação em feiras e eventos, os grupos envolvidos no projeto “Tramas Piauienses: Tecendo Identidade” movimentaram mais de R$412 mil em vendas. Para ela, esses números revelam o potencial comercial do artesanato quando bem estruturado e valorizado. 

O projeto, explica a analista, atua especialmente na preparação dos artesãos para os desafios do mercado contemporâneo, com foco em profissionalização, posicionamento estratégico e presença digital. “Hoje, sem presença digital, fica muito difícil competir”, reforça Socorro. O Sebrae tem trabalhado, inclusive, com os filhos de artesãs mais velhas, muitos deles com familiaridade com o mundo digital, promovendo uma união entre habilidade manual e comunicação online.

Essa conexão entre tradição e inovação tem reposicionado o artesanato piauiense em novos patamares de valorização. Outra ação de grande impacto foi o evento Piauí Sampa, onde 12 grupos do Piauí participaram de rodadas de negócios. Dessa iniciativa, nasceu a parceria entre a Tok & Stok e o grupo Curicacas, que resultou em um contrato para abastecimento de 20 lojas da rede em todo o Brasil.

Da arte dos trançados à arte das imagens

Exposição Arvore que Arranha, dezembro de 2024. Foto: Luan Matheus Santana

Os trançados das mulheres da Ilha Grande e das Curicacas já cruzaram fronteiras. Hoje, suas peças também são vistas como expressões vivas de arte e de identidade. Um reconhecimento que vem dos olhos de quem se emociona ao tocar um cesto, ao sentir na palma da mão a história de um povo inteiro. 

No final de 2024, elas integraram o projeto “Árvore que Arranha”, uma exposição fotográfica do artista visual e skatista Maurício Pokemon, que teve como objetivo apresentar uma outra versão da história do Piauí e da Batalha do Jenipapo. Pokemon trouxe as Carnaúbas como protagonistas e testemunhas vivas de uma memória que ainda é viva e pulsante nos territórios. 

Nessa outra história, a madeira e a palha da carnaúba servem como metáforas de resistência e do enraizamento das memórias locais. O projeto nasceu a partir da escuta de diferentes vozes que preservam modos de vida tradicionais, em biointegração com os cocais, em especial, das mulheres do Resolvido e de Ilha Grande.

“Referenciei e guiei a pesquisa inicialmente a partir das provocações do tradutor quilombola Antônio Bispo dos Santos (Nego Bispo), o qual convidei para colaborar diretamente na etapa inaugural da pesquisa em território em 2021, e juntos percorremos alguns trechos da Caatinga conversando com pessoas em diferentes comunidades e esgarçando reflexões pelo caminho. A partir dele, confluenciei com a professora, escritora, socioambientalista Maria Sueli, que trouxe outras ampliações de entendimento nessa trajetória”, explicou Maurício. 

Em vez de ser apenas um pano de fundo para eventos humanos, a carnaúba foi colocada em um lugar de protagonismo, como testemunha viva da história, representando a luta cotidiana das comunidades locais. “Quando a gente vê essas pinturas e representações da Batalha do Jenipapo, as carnaúbas estão sempre atrás, como cenário da batalha. A minha sensação é que esse trabalho põe as carnaúbas na frente”, afirma Maurício Pokémon. 

As carnaúbas que presenciaram a Batalha do Jenipapo e tornaram-se inspiração para as artes visuais de Maurício Pokemon, são as mesmas que hoje alimentam de sonhos, as mesas de trabalho das mulheres do Trançados da Ilha  e Curicacas. Do litoral à Campo Maior, uma certeza resiste: enquanto houver mulher trançando palha, haverá história sendo contada, haverá território sendo defendido e haverá futuro sendo tecido. 

_________________ SERRATE MARIA, UMA MULHER CARNAÚBA __________________

Em cada palha que trança, Serrate também se reinventa. Mãe, mestra, artesã — corpo e alma entrelaçados à fibra da carnaúba. Na palma de suas mãos, a natureza não é apenas matéria-prima,
é extensão do corpo, memória viva e ferramenta de futuro. É como se, ao trançar, ela fosse também trançada — pela força das mulheres que vieram antes, pelos fios da terra que ainda pulsa. Ela é raiz, caule e copa. Ela é carnaúba.

Foto: Alex Oliveira, projeto Fotoperformace Popular

Foto: Alex Oliveira, projeto Fotoperformace Popular

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