Com uma farmácia para cada grupo de 718 habitantes, o número desses estabelecimentos em Teresina é 10 vezes maior que o recomendado pela OMS.
Você também tem a sensação que a cada semana uma nova farmácia é inaugurada em Teresina? Ou de que, a cada esquina que andamos no centro da cidade nos deparamos com uma farmácia? O que parece ser um crescimento e evolução para a cidade, na verdade esconde um grave problema social e de saúde pública. Estamos adoecendo mais, por diversos motivos; estamos fazendo uso (muitas vezes desnecessários) de mais medicamentos para amenizar dores físicas e emocionais.
Esse fenômeno do crescimento das farmácias não é ilusório. Ele é real e não é nada recente, mas aqui em Teresina tem sido cada dia mais nítido como as grandes redes do mercado farmacológico estão se expandindo por todas as zonas da cidade. Segundo dados da Junta Comercial do Estado do Piauí, existem na capital 1.209 empresas ativas que têm como atividade econômica o comércio varejista de produtos farmacêuticos. A região que mais concentra é o centro com 220 empresas ativas, seguida pelo Itararé (51) e Mocambinho (35).
Com 1209 farmácias ativas na cidade, Teresina tem um estabelecimento desse segmento para cada grupo de 718 habitantes. Esse número é dez vezes maior que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de uma para cada grupo de 8 mil habitantes.
Nathália Cristina Ribeiro é gestora de saúde, farmacêutica e mestranda em Políticas e Gestão de Serviços de Saúde e Sociais na London Metropolitan University, em Londres. Ela vê esse cenário com muita preocupação e um dos aspectos disso é a conversão de um segmento da saúde coletiva em um produto mercadológico. Segundo a pesquisadora, o número de drogarias em Teresina cresceu mais de 50% de 2017 até 2019, sem falar em 2020 e 2021 com o COVID-19. Além disso, o maior grupo de farmácias do Brasil lucrou mais de 150 milhões em 2020, com o discurso de estar ajudando no bem estar da população.
“Além das drogarias, as indústrias farmacêuticas tiveram crescimento exorbitante em 2020, uma das produtoras de vacina lucrou quase três bilhões de dólares. No Brasil, o crescimento desse mercado de saúde é alarmante. Algumas operadoras de plano de saúde tiveram crescimento no valor de mercado na bolsa de valores, com crescimento de cerca de 20%. Enquanto isso, a maioria da população brasileira padece em ter acessos básicos. O SUS vem enfrentando a maior crise sanitária da história. O COVID-19, só atenuou as desigualdades de já enfrentadas pelo sistema de saúde. Pois, além de ter que lidar com as demandas COVID-19, já enfrentávamos nossas próprias endemias regionais, como dengue e tuberculose”, afirma.
Cerca de 69% das empresas farmacêuticas ativas em Teresina são microempresas e faturam até 360 mil reais por ano, ou seja, esse é um segmento econômico que, por baixo, movimenta anualmente mais de 300 milhões de reais só em Teresina.
No Brasil, os números são ainda mais assustadores, de acordo com dados divulgados pela IQVIA, nos últimos doze meses fechados em junho ocorreu um crescimento de 13,21% em comparação com o mesmo período de 2020. Conforme os números apresentados, o faturamento das farmácias de julho de 2020 a junho de 2021 foi de R﹩ 144,86 bilhões. Já no período de julho de 2019 a junho de 2020 esse valor foi, portanto, de R 127,96 bilhões.
O que o aumento no número de farmácias na cidade por dizer sobre a saúde coletiva dos seus moradores?
Dentre as várias leis que organizam a economia de mercado, uma delas nos ajuda a compreender um dos aspectos desse fenômeno: a relação da oferta e da procura. Essa é uma espécie de “regra informal” e diz que quanto maior a procura, maior será a oferta. Além disso, há também a relação com os preços, ou seja, quanto maior a oferta, menor o preço e vice versa.
Em termos mercadológicos, o aumento do número de farmácias pode ser explicado por uma maior demanda da população em busca do serviço. Todavia a origem da demanda é o que nos traz inquietações. Ou seja, as pessoas estão buscando mais as farmácias, mas por que?
Os motivos são diversos, vão desde a política econômica e social, até o saneamento básico, saúde mental, distúrbios alimentares, entre outros. Uma pesquisa da Mind Share Partners, Qualtrics and SAP, revelou que 50% dos Millennials (os nascidos entre 1981 e 1995) e 75% da Geração Z (os nascidos entre 1996 e 2010) já perderam empregos por problemas relacionados à saúde mental. Isso fez aumentar a demanda por psicólogos e psiquiatras em todo o país e, consequentemente, por mais medicamentos para aliviar os sintomas.
Mas não apenas isso. A pesquisadora Nathália Ribeiro explica que a base na saúde não está na assistência de saúde. Ao contrário do que muita gente pensa, ter acesso aos serviços de saúde não é o fator mais importante na saúde da população. A base para saúde e bem estar é social.
“Eu gosto de trabalhar com exemplos. A rainha Elizabeth tem 95 anos e um ótimo estado de saúde. No Brasil, a expectativa de vida é de em torno 76 anos, de acordo com o IBGE 2019. Mas na nossa realidade, a maioria dos idosos já têm algum tipo de comorbidade bem antes dos 76 anos no Brasil. Qual é o motivo? Social! O Brasil está de volta no mapa da fome, mais de 52% das famílias brasileiras têm algum grau de insegurança alimentar. Não tem como fazer saúde sem comida no prato. Além disso, nos últimos tempos os preços dos alimentos aumentaram exponencialmente, levando não só a redução do acesso a comida, mas também diminuição da qualidade da comida”, explica Nathália.
Outro determinante de saúde é acesso aos saneamento básico, que incorpora, acesso à água potável, coleta de lixo, que controla muitas doenças. Mais um determinante de saúde é a educação. “Eu me lembro de quando eu trabalhava em uma Unidade de Pronto Atendimento, os pacientes chegavam para receber tratamento sem saber reconhecer sintomas, porque para eles, ter manchas, era normal. Não quero parecer repetitiva, mas esses fatores são mais que sociais, são políticos”, afirma.
Para ela, é necessário relacionar saúde com conceito sócio-político e, a partir disso, pesar qual a sociedade que queremos construir, como podemos construir uma sociedade mais justa. A maioria da população é também a mais pobre, não tem acessos aos determinantes básicos de saúde e sociais.
As farmácias perderam sua essência e se transformaram em negócios de marketing
As farmácias se transformaram, ao longo do tempo, em um negócio onde é possível vender quase tudo, inclusive, remédios. De produtos de limpeza e higiênica, à perfumaria e brinquedos, de produtos alimentares à beleza. Elas estão a cada dia maiores e mais amplas, mas nem sempre foi assim.
Nathália Ribeiro explica que a farmácia é um estabelecimento de saúde, onde o profissional farmacêutico interage diretamente com o paciente para atender suas necessidades relacionadas à medicamentos. No entanto, nos últimos anos as drogarias viraram uma grande potência comercial, isso envolve marketing.
“Quando se fala de marketing, existem muitas entrelinhas na indução à compra, onde problema é criado e em cima disso o marketing propõe a solução. Chamo atenção para a atenuante, na ética de criar um ‘problema ou deficiência’ de saúde e lucrar com isso. O aumento do consumo de vitamina nos últimos anos aumentou muito segundo os estudos. Entra o paradoxo, da necessidade de ou estímulo a compra. Na minha opinião, precisamos rever isso”, explica a pesquisadora.
Medicalização da vida e sua relação a expansão do Mercado Farmacêutico
O conceito de medicalização da vida apareceu nos anos 70, o que pode ser descrito como a suspeita ou incorporação de um “problema” não médico. Isso significa que problemas não médicos são transformados em problemas médicos. Por exemplo, o aumento do consumo de vitaminas, muitas vezes as pessoas não têm nenhuma deficiência de vitaminas e sais minerais no organismo, mas por algum motivo elas acreditam que precisam daqueles suplementos.
Isso é uma questão individual, coletiva e também de escala essencialmente sociais e políticas. O governo tem o papel de fiscalizar a saúde da população, essa fiscalização é uma questão chave na saúde pública. “Do outro lado, a expansão do mercado farmacêutico tem implicações massivas no PIB. Em 2018, a soma de vendas de medicamentos chegou a quase 3 bilhões e esse número só aumenta. O fator político no controle do lucro da saúde da população é preocupante”, afirma.
Ela lembra que existem muitos relatos dos Incas, Astecas, Maias, Tupis e muitos outros povos originários sobre o tratamento de sintomas com plantas medicinais de acordo com os conhecimentos ancestrais de cada povo.
“De lá para cá houve uma mudança gigantesca derivado da colonização. Atualmente, a sociedade vive num contexto intenso, onde o principal é o alívio do sintoma/ dor e não a origem dele. Além disso, existe um medo de ficar doente e sentir dor (justificável, as pessoas precisam trabalhar), o que pode resultar na criação de problemas que não existem, aumentando o consumo de medicamentos. O nosso processo de evolução social tem papel fundamental nas implicações à saúde”, complementa Nathália.
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