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Esperanças Garcias do presente: veja carta-denúncia entregue à ministra Margareth Meneses em viagem ao Piauí

Carta denuncia genocídio e grilagem de terras no Piauí e cobra diálogo urgente sobre direitos humanos e racismo estrutural

Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Piauí recebeu a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, para homenagem a uma das maiores piauienses da história: a primeira advogada do Brasil, Esperança Garcia.

Durante a programação oficial do governo do Estado, uma intervenção ecoou as vozes de mulheres negras do presente: “Milhares de Esperanças Garcias passam fome no Piauí”, denunciava a faixa de intervenção. Esperança foi uma mulher negra escravizada que, em 1877, escreveu uma carta endereçada ao governador do Piauí denunciando maus tratos que ela e outras pessoas negras sofriam por seu carrasco.

A manifestação ocupou o palco do Theatro 4 de Setembro e fez chegar às mãos da ministra uma carta escrita por Maria Lúcia de Oliveira, do Centro de Defesa Ferreira de Sousa.

“A gente precisa ser ouvida, ministra. O Piauí grita, o nosso povo sofre com o encarceramento, na fome, no lixão de Teresina. Nós queremos aqui, é um grito das mulheres negras de Teresina que estão sofrendo,” denunciou a comunicadora/defensora popular, Maria Lúcia de Oliveira.

“O Piauí grita, o nosso povo sofre com o encarceramento, na fome, no lixão de Teresina”


As Esperanças Garcias do presente estão sofrendo. Nós precisamos urgentemente da aplicação da Lei 11.645 nas escolas. A gente precisa de um plano de ação. Nem a Prefeitura, nem o Estado têm um plano de ação para tratar do racismo estrutural, o racismo que mata o nosso povo. A gente está passando por um processo de matança do nosso povo aqui nas comunidades. A juventude negra é encarcerada nos bolsões, isso não vai resolver”, afirmou Maria Lúcia de Oliveira.

A defensora popular foi aplaudida pelos presentes, incluindo a própria ministra, que a aplaudiu de pé.  


A Lei 11.645, citada pela Lúcia durante o protesto, torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas públicas e particulares do ensino fundamental até o ensino médio. Essa lei ainda não é aplicada na rede estadual de educação do Piauí.

Reação do governador depois que a manifestação ocupou o palco do Teatro 4 de setembro.

Entrega da carta


Mais uma carta de esperança se faz presente, e foi entregue à ministra, com o pedido para que chegue nas mãos do Presidente Lula, e nas mãos do Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e da Ministra da Igualdade Social, Aniele Franco.

A carta denuncia a grilagem de terras no Piauí e o genocídio, por parte dos grandes empreendimentos, dos povos tradicionais e de seus modos de vida. Violações de direitos que continuam a beneficiar as famílias que há gerações concentram o poder econômico e político no estado.

“Fazemos uma denúncia direta e objetiva, o Piauí pretende legalizar a grilagem de terras e entregar territórios tradicionais, tomados sob muita violência, a pretexto de fazer a “regularização fundiária”, que na verdade é para beneficiar os herdeiros dos escravocratas que ainda nos colonizam, este mesmo grupo que nunca foi enfrentado de fato na nossa história, sempre legitimado enquanto representação natural do poder”, afirma a carta.

Clique aqui e confira a carta na íntegra.

Ministra comenta manifestação

De volta à programação oficial, a ministra citou a manifestação que cobrou políticas públicas do governo estadual e federal. 

“Que bom que estamos em democracia, porque a democracia nos proporciona a entender o sentimento do povo e a receber as notícias. É na democracia, e através da expressão popular, que nós podemos fazer também o movimento de socorrer as pessoas que estão precisando. Então, eu ouvi aqui hoje, desse movimento lindo aqui do Piauí, a manifestação do público e o povo se manifestando também nas suas dores”. 

A ministra comentou ainda sobre o fechamento do Ministério da Cultura durante os governos Temer e Bolsonaro e afirmou que as políticas públicas da cultura devem ser descentralizada e chegar aos lugares mais distantes dos grandes centros urbanos.


Recado para o governador

Durante a intervenção, Maria Lucia de Oliveira também cobrou ações do governador do Piauí Rafael Fonteles (PT), com políticas públicas e recursos específicos para a área.

“A gente precisa, senhor Rafael Fonteles, que o senhor apresente um plano. Porque para se tratar da questão da população negra que sofre nesse estado é preciso de dinheiro. É preciso de uma secretaria que respeite e diga o que o nosso povo ajudou a construir nessa história”, cobrou.

Esperança Garcia

Mulher negra escravizada, Esperança Garcia teve sua história reconhecida nacionalmente por causa de uma carta,  ganhou um busto nas dependências da sede da OAB-PI e o documentário “A Carta de Esperança Garcia” do cineasta Douglas Machado, foi exibido pela primeira vez e prestigiado pela Ministra e autoridades do Governo do Estado, durante evento oficial no Teatro 4 de Setembro.

Texto: Maura Vitória e Valmir Sousa
Revisão: Luan Ruswell

Confira carta na íntegra

Carta para Margareth Menezes

Senhora Ministra Margareth Menezes, sou Maria Lúcia de Oliveira Souza, 52 anos, nativa da cidade de Teresina- Piauí, moro no território onde iniciou-se a história dessa cidade desde que foi feita a transferência da capital de Oeiras para este território. É uma região onde temos um traço muito forte de povos originários, praticamos a cultura da pesca, do barro e plantio das vazantes, modos de fazer que foi herdado dos nossos povos originários.

Desde o início da transferência da capital de Oeiras para Teresina temos resistido às intempéries do colonizador. Primeiro nossos irmãos nativos indígenas foram violentados e expulsos da terra, posteriormente os negros e negras que vieram de Oeiras como propriedade do Estado para trabalhar na construção da cidade tiveram o direito a terra negado através da criação da Lei de Terras.

Hoje somos a terceira geração que resiste nessa região com os modos de vida originários, mas desde o ano de 2000 sofremos com a entrada do grande capital em nossa região e com o racismo ambiental. Nós que nunca fomos beneficiados com políticas públicas fomos surpreendidos em 2014 ao ter nossas residências e espaços religiosos (Terreiros de Umbanda) selados pela prefeitura sob aviso de despejo para a construção de um complexo turístico financiado pelo Banco Mundial. Tivemos que iniciar uma grande luta pela permanência de nossas casas. Ajudamos a construir essa cidade que nos nega, pois desde criança conhecemos a labuta do trabalho nas olarias, carregando tijolo para construir essa cidade.

Gostaria de relatar os casos de racismo que tem acontecido na nossa região, no nosso estado e na nossa capital, pois somos vítimas do racismo ambiental e da entrada do capital internacional somado ao advento da pandemia, o racismo estrutural tem agravado cada dia mais a situação do nosso povo. Atualmente estamos passando pelo assassinato em massa do nosso povo vítimas de siglas (facções) que adentraram nosso Estado, a capital de Teresina e os municípios adjacentes que vêm sofrendo com o aumento nos índices de violência, sobretudo no que diz respeito ao aumento da letalidade juvenil que têm se intensificado a partir dessa disputa entre organizações criminais que rivalizam entre si pelo monopólio do mercado ilegal de drogas e pela manutenção de fronteiras simbólicas demarcadas nas vilas e periferias das cidades. Mata-se lá, desova-se cá, e o resultado dessa disputa é expressa num conjunto de corpos jovens mortos nas suas comunidades em espaços públicos. Tal situação é extremamente danosa para nosso tecido social pois revela na quantidade de vidas jovens tombadas, o terror causado às juventudes que resistem entre organizações do crime e do estado, haja vista que o percentual de morte por intervenção policial no Piauí chegue a 75% e na capital se concentra com 83%.

As juventudes, sobretudo negra, pobre e periférica estão sendo impedidas de acessar os avanços sociais, de constituir família e de realizar seus projetos de vida, pois estão entre duas instâncias coercitivas que banalizam riscos de vida e naturalizam essas mortes e apenas estas. A culpabilização por suas próprias mortes tenta eximir a anuência que tem o estado em não conter os índices de letalidade juvenil. Estamos falando dos parques ambientais que se tornam lixões onde crianças tropeçam em corpos putrefatos enquanto empinam pipa. Estamos falando de políticas públicas para as juventudes que são, em suma, insuficientes e fragmentadas. Se tratando da juventude negra, pobre e de quebrada que está em risco iminentes de morte, não existem. Também devemos chamar atenção para a negação do direito dos LGBTs negros, como o caso de Paloma do Amaral, mulher trans negra, que acompanhamos desde o ano de 2000 e que vem sofrendo toda a marginalização do estado, no ano de 2021 ela foi espancada, humilhada e torturada, pois estava sendo acusada de roubo. Tivemos o caso da Dona Maria que residia numa casa há mais de 30 anos e  foi despejada por um promotor de justiça que alegou ser o dono do imóvel, demolindo a residência com a senhora dentro. Tivemos o caso da menina de 11 anos que foi estuprada e engravidou duas vezes.  Tivemos o caso de um menino de 11 anos que foi assassinado por falta de assistência, sequestrado e assassinado por engano. Tivemos o fechamento das maternidades onde muitas mulheres negras ficaram sem atendimento. Somado a isso a favelização do nosso povo e o desemprego, somos constantemente desterritorializados, retirados dos centros e transferidos para locais cada vez mais distantes, estamos desde a pandemia sem acesso adequado ao transporte público, temos uma população negra e excluída que trabalha no lixão de Teresina catando o que comer. Esse é apenas um pequeno relato das injustiças que ocorrem na nossa cidade e estado, tudo isso estruturado pela falta de uma discussão séria que coloque a questão racial em pauta e proponha soluções para o nosso povo. 

No interior do Piauí, nossas comunidades tradicionais, pesqueiras, quilombolas, indígenas, brejeiras e tantas outras existentes na caatinga e no cerrado, estão passando pelo processo continuado de genocídio de seus modos de vida, promovido pelos grandes empreendimentos que chegam nestes territórios gerando terror e morte, tratando-as como se nestes lugares não existissem vidas que precisam ser valorizadas e protegidas, tudo em nome do desenvolvimento econômico, o mesmo que justificou o boicote à medidas de isolamento na pandemia de covid 19, pois foi dito em auto e bom som, que as nossas vidas não eram mais importantes do que o desenvolvimento. Ocorre Excelentíssimo Ministro de Estado, que essa narrativa do desenvolvimento compulsório, é dita historicamente para nossas comunidades, esse conflito já é vivenciado a muito tempo nas zonas ditas rurais do Piauí, aliás, nos tiraram de África para enriquecer algumas famílias com os nossos corpos e nossa força de trabalho, ou seja, para o desenvolvimento, deles.

E assim segue até hoje, a ferrovia, a monocultura, a linha de transmissão, a mineração, tudo que é desenvolvimento para eles precisa significar, necessariamente, a nossa morte, nossos territórios são violados assim como nossos corpos. Portanto, o fosso civilizatório que nos encontramos foi construído dessa forma, e no Piauí, o estado que se orgulha de ser, proporcionalmente, o que mais rejeitou o presidente genocida, caminha à passos largos ao modelo que levou os territórios das regiões sul, sudeste e centro-oeste ao cenário político que quase nos levou novamente ao abismo político-institucional dos últimos quatro anos.

Fazemos uma denúncia direta e objetiva, o Piauí pretende legalizar a grilagem de terras e entregar territórios tradicionais, tomados sob muita violência, a pretexto de fazer a “regularização fundiária”, que na verdade é para beneficiar os herdeiros dos escravocratas que ainda nos colonizam, este mesmo grupo que nunca foi enfrentado de fato na nossa história, sempre legitimado enquanto representação natural do poder.

O que ocorreu no dia 08/01/2022 em Brasília é a expressão do alcance desse poder que nosso povo enfrenta nessa parte do Brasil invisibilizada, pois os mesmos golpistas de Brasília, continuam a nos açoitar em nosso território, mas aqui, porém, ainda não há frente ampla para nos ajudar, pelo contrário, aqui, os que se arvoram democratas atuam do lado dos nossos algozes e os fortalecem para perpetrar o golpe que nos é dado diariamente nestes territórios “esquecidos”.

Por tudo isso, viemos até a vossa excelência, com esperança e muita resistência que sempre nos coube, pedir um diálogo para que possamos pensarmos dar um encaminhamento para a triste situação que tem passado a população nesse estado especialmente, nesta cidade, para que possamos nos fazer ser ouvidos e dizer o que são direitos humanos para nós. 

Peço que a senhora encaminhe esta carta ao Presidente Lula, ao Ministro Silvio Almeida e à Ministra Anielle Franco para que também possam nos ajudar a resolver essas questões.

Referências 

https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2022/11/09/menina-de-9-anos-e-internada-em-estado-grave-apos-ser-espancada-por-membros-de-faccao-no-litoral-do-piaui.ghtml

https://globoplay.globo.com/v/11233787/ 
EM-EMBARGO-ATE-1711_5-AM-REDE-DE-OBS_PELE-ALVO2_171122.pdf (observatorioseguranca.com.br)

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